Cotidiano

Isolamento social potencializa dependência tecnológica





A necessidade de utilizar a internet para a realização das atividades de rotina potencializou problemas de saúde mental. Especialistas explicam o fenômeno e compartilham práticas saudáveis

O isolamento social potencializou um dos problemas mais comuns da modernidade: a dependência tecnológica. Confinados entre quatro paredes, muitos enxergaram a internet como um meio de se distrair da realidade conturbada e a única alternativa para se comunicar com o exterior.

Para o psicólogo clínico Gilberto Godoy, as contingências da pandemia criaram novas demandas e mudaram a forma com que as pessoas se relacionam com tudo à volta. O uso desenfreado de tecnologias, por exemplo, passou a ser um dos grandes responsáveis pelo aparecimento e/ou agravamento de problemas mentais. “A forma de o homem se relacionar com outros homens e com as coisas se modificou muito. Dentro do consultório, notei que as pessoas começaram a ter alguns sintomas que, antes, ou eram mascarados ou não existiam, como ansiedade, síndrome do pânico e depressão”, observa.

Pesquisa realizada pelo Laboratório Delete-Detox Digital e Uso Consciente de Tecnologias, da Universidade Federal do Rio De Janeiro (UFRJ), evidencia essa dependência. Realizado no período de 1º de novembro de 2020 a 1º de janeiro de 2021, o estudo mostra que 62,5% das pessoas usaram tecnologias por mais de três horas todos os dias, e 49,1% por mais de quatro horas, durante o período de isolamento social imposto pela pandemia da covid-19.

O questionário, aplicado para 336 respondentes de todo o país pela plataforma Google Forms, também evidenciou que 50,6% das pessoas costumavam checar com frequência suas mensagens, enquanto 56,3% delas, quando deixavam de usar tecnologias frequentemente, voltavam a acessar.

A pesquisa, sob responsabilidade da psicóloga doutora em saúde mental Anna Lucia Spear King, mostra outros dados interessantes sobre essa dependência: 44,3% frequentemente se sentiam mais felizes durante o dia por usar as tecnologias, enquanto 26,8% se diziam tristes por não poderem usá-las. Já 17,3% relataram algum medo ao perceber que não tinham acesso às tecnologias e 29,5% ficavam nervosos.

Hábitos saudáveis

Godoy considera que o pontapé inicial para lidar com o vício em tecnologia é reconhecer a existência do problema e buscar ajuda profissional. “Procurar uma boa terapia é fundamental para a pessoa começar a mudar de atitude.” Apesar de alguns não sentirem os efeitos a curto prazo, o excesso de exposição a tecnologias pode gerar problemas no futuro.

Segundo o psicólogo, o segredo para evitar danos à saúde é praticar o autocontrole e o uso consciente. “Com a dosagem certa, com equilíbrio de uso, a tecnologia pode ser benéfica em vários sentidos. O problema é que ter autocontrole não é fácil e, por isso, é importante ter a orientação de práticas terapêuticas.” Métodos como o estabelecimento de metas, assim como a identificação dos sinais que o corpo dá são alguns exemplos.

Já o psiquiatra Fábio Aurélio recomenda a adoção de uma visão panorâmica sobre a questão para que, assim, hábitos saudáveis, como a administração do tempo de uso da internet, sejam colocados em ação. Para ele, o mais importante é analisar se o tempo de uso de tecnologias não está afetando outras áreas da vida. “É muito difícil calcular quanto tempo seria ideal, mas, normalmente, na saúde mental, partimos do pressuposto de que tudo que você faz que não interfere na sua vida pessoal, familiar e social é aceito. Então, se você usa a internet de forma saudável, não atrapalhando a sua rotina e a sua convivência social, tudo bem”, avalia.

A revolução nas comunicações

Com a oferta crescente de acesso à internet e a popularização de mídias sociais, como Facebook, Twitter, Instagram e outras, o modo de vida do ser humano mudou. “Nossa maneira de viver, de nos relacionar e até mesmo de consumir informação e negócios on-line nunca mais foi a mesma”, afirma Nathaniel Simch de Morais, mestre em computação aplicada pela Universidade de Brasília (UnB).

Para ele, no entanto, esse acesso fácil aos recursos tecnológicos também encontra um cenário comum, que é o indício de um vício comportamental relacionado ao uso indiscriminado e compulsivo de mídias sociais. “Isso tem sido exaustivamente estudado pela comunidade acadêmica. Desde janeiro de 2020, podemos encontrar mais de 21 mil registros de publicações relacionadas ao tema. Desse total, pouco mais de 12 mil trazem o termo covid-19 nos conteúdos.”

Para ele, a pandemia não trouxe apenas problemas para a saúde física, mas potencializou um problema psicológico. “Uma vez que obriga as pessoas a passarem mais tempo em casa, e usando a internet, pois é a principal ferramenta para socialização.”

Além disso, ocorreram algumas mudanças: “Os pais, de repente, acumularam suas funções com as de professores e, em muitos casos, com o trabalho, que passou a ser no formato remoto. Assim, os níveis de ansiedade passaram a crescer, para os pais e para os filhos, que também trouxeram para casa seus estudos com as aulas remotas”, completa.

Para o professor, nesse ponto, o vício pelas redes sociais se reflete em ansiedade, depressão, distúrbios alimentares e de sono. “Esses sintomas são potencializados pela crise econômica, também advinda da pandemia.”

A prevenção do vício em tecnologia e seus impactos psicossociais são um esforço que deve ser demandado pelas políticas públicas. “Aqui entra o termo ‘parentalidade participativa’, não como sobrecarga para os pais, mas como um uso envolvente da tecnologia com as crianças com fontes de alta qualidade adequadas à idade”, constata Nathaniel. “As opções sugeridas são de envolver os jovens com as opções de uso mais produtivo e a conduzi-las a uma utilização benéfica, em vez de focar apenas nos limites.”

Equilíbrio em prática

A estrategista digital e produtora de conteúdo multimídia Michelle Macedo, 32 anos, possui uma estreita ligação com as mídias sociais e demais tecnologias de comunicação. Com enfoque no Instagram, rede social que também lhe rende o título de influencer, ela oferece serviços como gestão de redes, consultoria digital, análise de perfil e mentorias.

Por ter o meio virtual como principal ferramenta de trabalho, aprendeu desde cedo a lidar com as consequências do consumo de informações. Hoje, sabe separar a vida profissional da pessoal e procura encontrar um equilíbrio. “Eu encontrei esse equilíbrio na prática. Quando acontecia um fato que me deixava triste, eu levava para a terapia e conversava com meu psicólogo sobre isso. Eu faço terapia desde adolescente, é uma coisa que fez parte da minha vida e me ajudou, de certa forma, a separar o que é trabalho e o que é pessoal, o que me faz bem e o que não faz, o que é meu e o que é do outro”, diz.

Durante a pandemia, o distanciamento de familiares e colegas foi o que mais pesou emocionalmente para ela, resultando em crises de ansiedade, que a fizeram voltar a fazer terapia.“O isolamento afetou o meu emocional porque, como eu estava em home office, a conversa que eu tinha com meus colegas de bancada não podia ter mais. Passei por alguns problemas de ansiedade justamente por não ter pessoas com quem eu pudesse compartilhar, ter aquela troca, além do fato de morar sozinha e não ter minha família por perto.”

Para evitar os sentimentos negativos, Michelle procura escolher o tipo de conteúdo a que se expõe. “Eu criei métodos dentro da minha cabeça para filtrar o que eu devo consumir ou não, pois o excesso de informação, de consumo, ainda mais em redes como o Instagram, que passam uma imagem distorcida da realidade da vida das pessoas, pode provocar ansiedade e sentimento de inferioridade”, acrescenta.

Controlar o tempo dentro das redes sociais e aproveitar o momento presente são as estratégias que ela incorpora no dia a dia. “Ter um tempo fora das redes sociais e estabelecer um limite é importante. Por exemplo, quando estou com meus amigos, família, namorado, coloco o celular com a tela para baixo para nem ver as notificações. É preciso entender que você precisa ter um tempo para você e não deixar que a rede social te impeça de viver o presente”, aconselha.

Detox

Os 10 passos do Laboratório Delete-Detox Digital e Uso consciente de Tecnologias para o detox:

1- Utilize o bom senso para que o uso não se torne abuso no cotidiano.
2- Fique atento às consequências físicas (como privação de sono, dores na coluna, problemas de visão) e psicológicas (depressão, ansiedade) devido ao uso excessivo.
3- Dose a prática de uso de tecnologias no cotidiano. Verifique se seu desempenho acadêmico ou no trabalho estão sendo prejudicados.
4- Reflita sobre seus hábitos e faça diferente.
5- Não troque atividades ao ar livre para ficar conectado.
6- Prefira uma vida social real à virtual.
7- Pratique exercícios físicos regularmente e faça intervalos regulares durante o uso de tecnologias.
8- Não abale o seu humor com publicações virtuais nem acredite em tudo que é postado.
9- Valorize suas relações familiares.
10- Pense no meio ambiente, recicle os aparelhos e evite a troca frequente sem necessidade.

*Estagiárias sob a supervisão de Sibele Negromonte

Fonte: Raquel Ribeiro e Tayanne Silva - Correio Braziliense