Cotidiano

Servidor público relata dias de desespero no Amapá por causa do apagão





Sem energia, sem água e sem solução

Na terça-feira (3), por volta das 19 horas, um raio atingiu uma subestação de energia que abastece 90% do Amapá. Catorze das dezesseis cidades do estado ficaram completamente sem luz. Ao todo, foram cinco dias de apagão e três dias sem abastecimento de água. A pressão popular, que ganhou força nas redes sociais com a campanha #SOSAmapa, fez com que o problema fosse parcialmente resolvido – as cidades agora funcionam com revezamento de luz, em uma escala nem sempre regular. Mas a situação continua insustentável. Além da instabilidade, moradores temem perder eletrodomésticos e comida por causa das quedas repentinas de energia. Alguns bairros mais pobres seguem completamente sem luz. No sábado, a Justiça determinou que a situação fosse totalmente normalizada até o dia 10, sob pena de multa para a companhia responsável pela estação, a Isolux, uma empresa privada espanhola que tem um histórico de maus serviços. Nesta segunda-feira (9), o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, afirmou que não será possível cumprir a determinação judicial. 

O carioca Fábio Pereira se mudou para Macapá há pouco mais de um ano. A seguir, o servidor público federal relata os momentos de desespero durante os dias de apagão. Sem resposta rápida do poder público, a população macapaense ficou completamente isolada. Em meio à pandemia, pessoas se aglomeravam em busca de pontos de energia e vagavam pela cidade sem saber para onde ir. Filas quilométricas foram formadas nos principais estabelecimentos da cidade, e as pessoas perderam os alimentos que tinham em casa. À angústia somou-se a indignação com a falta de resposta dos governantes, e os moradores começaram a organizar protestos nas ruas. As cenas distópicas que Pereira relata ilustram o descaso com o estado que ficou quase uma semana no escuro em meio à maior crise sanitária do século.  

Em depoimento a Camille Lichotti

A primeira queda de luz veio na noite de terça, por volta de 19 horas. Já estava sem chover por aqui havia bastante tempo, e nesse dia veio uma frente fria, com um temporal e raios. Aqui em Macapá só existe verão e verão, não tem outra estação. O clima é tipo de selva, a umidade é muito alta e a sensação térmica também. Não sei se tinha para-raios na estação de energia que abastece catorze municípios do estado, mas o gerador explodiu e teve um incêndio. Eu estava em casa e de repente apagou tudo, uma escuridão total. Eu não tinha noção do que havia acontecido e, como todo mundo, achei que fosse voltar no dia seguinte. Mas, quando eu acordei, na quarta, e vi que tudo continuava apagado, tive a dimensão do problema e vi que não era uma queda de luz comum. 

Eu saí pro trabalho e vi que nada funcionava na rua. Os semáforos estavam todos desligados, nada funcionava. Sou servidor público e trabalho em um escritório. Lá tem gerador, mas nosso medo é que ele não aguente, por ficar tanto tempo ligado. Meu primeiro desespero foi de abastecer o carro – os postos de gasolina tinham filas quilométricas, coisa de ficar quatro horas esperando. As filas para sacar dinheiro também estavam absurdas. Os mercados que têm gerador e outros estabelecimentos não aceitam cartão, só dinheiro. Como as pessoas vão comprar as coisas de que precisam? A nossa preocupação é começar a ter saque, tumultuar em mercado. Todo mundo sai ao mesmo tempo, em desespero, para sacar alguma coisa do banco. E aí tem gente que começa a se aproveitar, né? O galão de 20 litros de água, por exemplo, custava 4 reais e agora está custando até 10. 

Como a luz não voltou no dia seguinte, tudo que estava na geladeira já estragou. Eu joguei praticamente tudo fora: carne, frango, queijo, essas coisas que estragam. O que as pessoas começaram a fazer foi buscar gelo, para tentar salvar alguns mantimentos. As filas para comprar gelo também estão absurdas e não tem condição de distribuir para todo mundo. Perdi o que tinha de comida, mas mal ou bem sou funcionário público. Fico imaginando as pessoas que trabalham com comércio informal, que tem muito aqui. A cidade está parada. 

Como se não bastasse isso, na quinta ainda faltou água. Eu cheguei em casa para tomar pelo menos um banho e não tinha água. Tive que comprar uns doze garrafões de 1,5 litro para conseguir tomar um banho. Pela falta de luz, as bombas não conseguem ser ligadas pras casas. Então nem água para fazer comida tem. Sem água no escritório, eu fui liberado mais cedo, umas 13 horas. Daí vou pro shopping almoçar e fico lá esperando escurecer pra chegar em casa e dormir. Todo mundo está indo ao shopping ou aeroporto, procurando um ponto de luz para tentar carregar o celular. A verdade é que estamos isolados do resto do Brasil. Na rua você vê as pessoas perdidas, andando pra lá e pra cá, sem saber pra onde vão, porque não importa aonde você vá, não tem luz e nem água.

Todo mundo aqui agora está caçando um ponto de energia para carregar o celular. As pessoas trazem de casa as extensões e fica todo mundo em volta das tomadas. E fica uma aglomeração terrível, né? Todo mundo junto. A gente está num pico da pandemia e nosso medo é aumentar mais ainda. Os hospitais trabalham com gerador, mas não são lá essas coisas. Nossa preocupação é termos um lockdown de novo aqui depois que a luz voltar, porque no meio disso ficamos sem proteção nenhuma. As pessoas estão se aglomerando para buscar luz. Todo mundo andando em grupos de cinco, seis pessoas, feito nômades, suando, sem saber pra onde vão, buscando algum ponto de luz. É uma coisa bem impactante. E olha que eu ainda tô na capital, né? Como pode em pleno século XXI, uma capital não ter o mínimo de suporte pra voltar a energia? Como pode, não tem uma água pra beber, sinal de internet? Como podem catorze municípios passarem por esse abandono, esse descaso?

Eu sou carioca e fiquei espantado como a coisa não funciona aqui no Norte e ninguém se pronuncia, o governador [Waldez Góes (PDT)] não fala com a população, é como se nada estivesse acontecendo. Ficamos dias sem um plano para restabelecer luz e água. E olha que aqui tem duas hidrelétricas. Eu me mudei há um ano e seis meses e vejo como é absurdo como o governo não dá importância para a população. A única chance de ter atenção é porque o presidente do Senado é o [Davi] Alcolumbre, e o irmão dele quer vir como prefeito [José Samuel Alcolumbre é candidato à prefeitura de Macapá pelo DEM]. Ele vem fazendo campanha dizendo que as coisas aqui vão melhorar porque o presidente do Senado é amapaense. Mas vamos ver, né? Eu acho que não vai melhorar tão cedo.

A maior dificuldade é dormir nesse calor absurdo, e não ter nem água para tomar banho. E o pior de tudo é não saber quando vai voltar. Nós estamos assustados, não sabemos como vai ser semana que vem. Eu tento ler alguma notícia na internet, mas não diz nada. Não tem uma posição do que vai ser. Parece que nada está acontecendo. A única pessoa que fala é o Ministro de Minas e Energia [Bento Albuquerque]. Ele deu uma posição de que a situação estaria normal em dez dias. Mas será que vamos aguentar dez dias? Será que o povo aguenta ficar nessa situação? 

Hoje já é segunda-feira. Desde sábado começou o revezamento: são seis horas de luz, seis horas de apagão. Mas em alguns bairros mais afastados, a luz nem está chegando. E as pessoas começaram a fazer manifestação, para ver se adianta alguma coisa. Na minha casa, a luz vai e volta. De repente para, no meio da noite, depois volta por algumas horas e para novamente. Estamos assim desde sábado. Mas a parte do tumulto, de posto de gasolina e alguns mercados que recebem dinheiro, continua. Estamos em uma falsa normalidade. 

A água está voltando em algumas casas. Eu, por exemplo, tenho poço na minha casa, então nos picos de luz consigo bombear a água. Qualquer coisa que você tem, que não tinha antes, já ajuda. Mas a verdade é que os principais problemas continuam. Na madrugada, a luz para de repente. Com isso, eu tenho que ficar em casa até a luz retornar porque, se eu sair sem desligar o disjuntor, alguns aparelhos podem queimar ou até pegar fogo. O problema é a gente começar a perder nossos eletrodomésticos com isso. 

O calor continua insuportável, e não tem ar condicionado em lugar nenhum. O governador e o prefeito não se manifestam, as previsões são furadas. É um passando o problema pro outro. Todas as pessoas que vieram de outros estados para morar aqui dizem a mesma coisa: é chocante como as coisas não funcionam. O poder fica sempre na mão dessas poucas famílias, sabe? Parece até uma coisa coronelista. Infelizmente, isso não vai melhorar nunca. 

Fonte: UOL