Desde que o Sars-CoV 2 mostrou a que veio, além de correr atrás de uma vacina, os cientistas passaram a sonhar com um remédio capaz de dar uma paulada fatal no novo coronavírus. Ou, para descrever com mais precisão o objetivo, acabar com a graça de ele fazer cópias e mais cópias de si mesmo para deixá-lo ali, sem herdeiros, até acabar seus dias solitário, sob a mira do sistema imunológico.
Na pior das hipóteses, nossas defesas dariam conta de aniquilar um punhado de vírus. O problema é que os vírus tendem a se multiplicar em uma velocidade de tirar o fôlego. No caso do causador da covid-19, ao pé da letra, sem dar chance de reação.
Diante do drama, já se tentou —e se tenta— muitas alternativas antivirais nas prateleiras das farmácias. Foi assim com o remdesivir lá atrás, logo no comecinho de tudo, em abril quando o Sars-CoV-2 tinha feito suas primeiras vítimas em sua viagem de quatro meses pelo mundo. Mas a droga, que já deu tabefes no vírus do Ebola, desta vez, contra as expectativas, parece não fazer cócegas no Sars-CoV-2. Sinto muito.
E praticamente toda semana, a ciência anuncia —e a gente divulga— mais uma tentativa. Cá entre nós, quantas vezes será que você não leu algo sobre mais uma "droga promissora" para atacar o novo coronavírus?
A última (que eu saiba, porque pode ter surgido outra medicação hoje mesmo) foi a EIDD-2801, capaz de interromper a replicação do novo coronavírus e prevenir sua entrada nas células. Lindo, não? Mas os cientistas observaram o fenômeno em ratinhos geneticamente modificados para terem um pulmão parecido com o nosso. Até o remédio mostrar efeito —e baixa toxicidade— em gente como a gente muita pesquisa deve rolar sob a ponte. E os tiros sempre vêm caindo na água.
"Nenhum antiviral, ao menos até o momento, mostrou resultado contra o novo coronavírus", afirma o infectologista Luís Fernando Aranha Camargo, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Só de ouvir isso, como muitas pessoas leigas, até fico com aquele aperto no peito de quem pensa que o Sars-CoV-2 seria, então, um tipinho indestrutível, contra o qual nada funcionará. Mas não é bem assim.
"Simplesmente, não estamos usando nada, nenhum antiviral criado sob medida para o Sars-CoV-2. Para existir algo assim, levaria anos. É muito diferente de desenvolver uma vacina, quando até podemos acelerar o passo porque o caminho para criar imunizantes é conhecido", diz o médico.
Outra ideia que andou se propagando, entre uma notícia e outra sobre mais um remédio prometendo mundos e fundos contra a covid-19, é que os tais antivirais seriam bons para viroses crônicas, como a infecção pelo HIV da Aids e certas hepatites, mas que eles não resolveriam tão bem doenças agudas. "Bobagem", diz o doutor, logo me corrigindo. E cita os antivirais contra gripeou mesmo o herpes, que são infecções agudas. Aliás, tudo começou com o herpes.
Uma vacina é feita para o seu corpo aprender a vencer um agente infeccioso, respondendo ao invasor com maior prontidão antes que ele mostre suas garras, cresça e apareça. Um antiviral, não. Ele não quer treinar o sistema imunológico de ninguém. Vai direto ao inimigo tentando resolver a parada por sua conta, sem pedir ajuda.
Um antibiótico faz isso também, por exemplo —no caso, contra bactérias. Antibióticos nunca resolvem doenças causadas por vírus, não custa repetir. Nem sequer arranham o novo coronavírus e, se entram no balaio do tratamento de alguns pacientes com a covid-19, é só para evitar que alguma bactéria tire proveito da situação e se multiplique no organismo adoentado, piorando tudo de vez.
Há cerca de meio século, porém, ninguém botava fé de que, um dia, poderiam existir medicamentos para combater vírus diretamente que não fizessem muito mal a quem os engolisse. Ora, os primeiros antivirais testados foram da década de 1960 e decepcionaram um bocado porque tinham os mesmos efeitos fortíssimos da quimioterapia contra tumores do passado.
Faz sentido: o vírus toma posse da nossa maquinaria celular de tal jeito que ficava difícil destruí-lo sem focar moléculas da própria célula, levando junto aquelas que estavam sadias.
Em 1968, porém, a nova-iorquina Gertrude Elion —Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1988— reparou que uma molécula usada no tratamento do câncertinha um efeito antiviral considerável. Passaram exatos dez anos até ela apresentar ao mundo o aciclovir, um inibidor potente do vírus do herpes com quase nada de efeitos colaterais. O aciclovir está para os antivirais como a pioneira penicilina está para os antibióticos.
"Os mecanismos de ação são bastante diferentes entre um antiviral e outro", explica Aranha Camargo. "De modo geral, esses remédios sempre inibem uma molécula essencial para determinado vírus se replicar. Ou, então, barram o vírion, que é como chamamos a partícula recém-criada, já completa, pronta para infectar outra célula."
São muitas as moléculas que, em uma cadeia feito dominó, fazem parte desses processos em vírus diversos. Tem a enzima transcriptase que, se inibida, não deixa o DNA de um vírus se duplicar. Tem a protease, a DNA-polimerase. Tem a neuraminidase do vírus da gripe, que —em linguagem rasteira— faz ele se grudar na célula que será sua próxima vítima. Vai saber onde interceptar o novo coronavírus! E mais: não há tempo para descobrir como fazer isso sem reações adversas inusitadas.
Vírus não é exatamente uma partícula viva —ele dá um grande nó na cabeça dos biólogos, isso sim. Mas vamos falar em matar como licença poética. Sim, em tese, um antiviral é feito para matar aquele vírus para o qual foi criado. "A ideia não é diminuir a carga viral para manter a doença sob controle, mas acabar com o vírus de vez", conta Aranha Camargo.
Porém, nem sempre um antiviral consegue a proeza. "Mas aí é quando o vírus entra em latência", explica o infectologista. "O remédio varre sua presença no sangue, mas ele fica escondido em algum tecido, quase que adormecido, até um dia voltar a se replicar."
O vírus da Aids, por exemplo, nunca vai embora. No entanto, os remédios contra o HIV garantem que, ao sair de seu esconderijo, ele seja interceptado na circulação, mantendo a situação sob rédeas curtas. "Isso é bom, claro. Mas o objetivo inicial de uma uma droga contra vírus seria realmente fazê-lo sumir."
O médico conta que, por sorte, até agora não existe qualquer evidência de que o novo coronavírus tenha latência, essa capacidade de se fingir de morto —só nos faltaria essa! É a boa notícia. A não tão boa é a seguinte: "Até o dia em que vai aparecer um antiviral específico para o Sars-CoV-2 esta pandemia já terá passado há década ou décadas."
Enquanto isso, os pesquisadores arriscam usar o que já existe —inclusive, como alguns já fizeram, testando medicamentos que não foram criados para vírus, como antimaláricos e antiparasitários. Em princípio, nada errado em ver se uma droga criada originalmente com outro fim não poderia ter ação antiviral. Foi assim até com o aciclovir do herpes, não foi mesmo? O mal é insistir no que não dá certo e arriscar não uma nova terapia, mas a vida do paciente.
Fonte: UOL