O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que realizará sua edição 2020 em 17 e 24 de janeiro, vai escancarar novas camadas de desigualdade na educação surgidas durante a pandemia do coronavírus e que prejudicam principalmente os jovens mais vulneráveis no terceiro ano do ensino médio.
A avaliação é de José Francisco Soares, especialista em mensuração de desigualdade de ensino que entre 2014 e 2016 foi presidente do Inep, órgão do Ministério da Educação responsável pela aplicação do Enem e das demais avaliações da educação no país.
É também professor emérito da UFMG e cocriador do Indicador de Desigualdades Educacionais e Aprendizagens (IDeA), índice que avalia, em cada município brasileiro, o nível de aprendizagem e suas desigualdades entre diferentes grupos sociais e raciais.
Na prática, essas novas camadas de desigualdade a que se refere Soares farão com que alunos com melhores condições de estudar - por exemplo, os que tiveram segurança alimentar, acesso à internet e às aulas - ou que já tivessem concluído o ensino médio terão mais chance de conseguir vagas em universidades via Enem.
Isso em detrimento dos alunos mais vulneráveis, que ficarão mais distantes do ensino superior e, como consequência, com menos chance de renda maior e de oportunidades melhores de empregos no futuro. Os mais prejudicados, na visão de Soares, tendem a ser os alunos de ensino médio que não conseguiram acompanhar as aulas.
Criaria-se, assim, uma nova exclusão, mesmo entre grupos que tradicionalmente já tinham dificuldades de acesso ao ensino superior.
Para Soares, a despeito dos novos entraves para a realização do Enem, depois de um ano de ensino remoto e em meio a um novo pico de casos de covid-19 no país, não faria sentido adiar o exame novamente - ele avalia que o Inep tem estrutura logística suficiente e que, ao adiar as provas, jogaria-se no aluno o ônus por seu possível mau desempenho, em vez de tratar o problema como algo estrutural.
"Prefiro dizer: há um problema novo (de desigualdade) que a gente precisa tratar", opina.
O tema, porém, tem despertado intensos debates nos últimos dias. Na sexta-feira (8/1), a Defensoria Pública da União entrou com uma ação na Justiça pedindo o adiamento do exame, afirmando que "não há maneira segura para a realização de um exame com quase seis milhões de estudantes neste momento, durante o novo pico de casos de covid-19".
Em entrevista à BBC News Brasil, Soares comentou também sobre outras manifestações crônicas da desigualdade de ensino e de estratégias para combatê-las - usando, inclusive, a tecnologia, que na pandemia ganhou espaço inédito na educação.
Questionado pela reportagem se este será o Enem mais desafiador dos cerca de 20 anos de história do exame, Soares diz que a equipe técnica do Inep está preparada para as questões logísticas da prova mesmo nas condições impostas pela pandemia.
"Costumo falar que se o Brasil entrasse numa guerra, o coordenador logístico teria que ser alguém dessa equipe (do Inep), que há muitos anos vem conseguindo fazer o exame no país: a prova chega, os fiscais chegam, é muito impressionante. O Brasil tem essa capacidade logística também nas vacinas, nas eleições. Esse é um lado que dá um certo conforto", diz.
"Neste ano tem o desafio do distanciamento social, mas o número (de 5,7 milhões de inscritos) é muito menor. Não estamos batendo nos 9 milhões. Esse grupo experiente vai abrir os espaços necessários (para a realização da prova)."
Do ponto de vista de ensino durante a pandemia, porém, a questão é mais grave, diz Soares.
Apesar de acreditar que a desigualdade de acesso ao ensino superior é bastante amenizada pela Lei das Cotas - que reserva 50% das vagas de universidades e institutos federais a alunos de escolas públicas -, o Enem deste ano vai escancarar problemas que se aprofundaram.
"A vantagem (dos jovens) que estudam em escolas privadas e que têm na família um apoio maior vai se compondo de tal maneira que, quando chega a hora do Enem, é quase um jogo de carta marcada. Ele escancara as desigualdades. Só que neste ano isso ficou pior, porque criamos uma nova desigualdade, entre os alunos que estão terminando o ensino médio (e não conseguiram acompanhar as aulas) e os que já tinham terminado. Uma nova desigualdade entre os mais pobres. Criamos uma exclusão nova", explica.
"Não estou dizendo que a gente deve adiar o Enem, que não deve ter Enem. O que estou dizendo é que a gente precisa tratar disso de forma concreta. (...) Uma hipótese provável é que vamos ter menos estudantes de ensino médio das escolas públicas sendo admitidos (em universidades públicas, em favor de alunos que já haviam concluído o ensino médio antes da pandemia). Não é fácil, porque é uma distinção entre dois grupos que já eram excluídos. Por isso falo que estamos inventando uma nova desigualdade."
Uma possível solução, embora de implementação difícil, seria reservar vagas nas universidades públicas para alunos que estavam no terceiro ano, em proporção semelhante ao que cada universidade aprovou no ano anterior, diz ele.
Embora as soluções não sejam fáceis, Soares acha mais eficiente focar os esforços nelas do que em discutir um eventual novo adiamento do Enem - que tem sido defendido por parte dos estudantes, analistas de educação e grupos políticos, para dar mais tempo de preparo aos jovens e tentar sair do pico da pandemia.
"Acho que (adiar) não teria nenhum efeito, basicamente. Temos um processo de seleção, infelizmente, que vai separar (jovens admitidos ou não no ensino superior). Prefiro perceber que houve uma nova desigualdade e não deixar esses alunos padecerem. Mas acho que o sistema tem que continuar", afirma.
"O Brasil tem (o hábito) de transferir culpa. Então, quando adio o Enem, estou também criando uma fantástica justificativa: 'você não passou, o problema é seu'. Prefiro dizer: há um problema novo que a gente precisa tratar. Não vai ser com algo episódico (adiamento) que vamos resolver."
Pesquisas de opinião recentes com pais de alunos da rede pública de ensino sugerem que um alto índice deles - até um terço - teme que os filhos abandonem a escola por conta da pandemia.
Para Soares, evitar a evasão escolar será o maior desafio da educação neste ano.
"Com todas as críticas que a gente pode ter, o país vinha melhorando ao longo desses anos. A primeira melhoria foi levar o aluno para a escola. (...) Onde começa o problema? Aos 13 anos. A criança entra na adolescência e começa a desistir (da escola). É isso que a pandemia vai acirrar", afirma.
Especialistas apontam que, ao sair da escola e entrar precocemente no mercado de trabalho - particularmente em um momento de crise econômica -, esse jovem iniciará uma trajetória de piores perspectivas profissionais, menores salários e menor chance de mobilidade social.
"Temos que cuidar para a criança não sair da escola. Esse é o esforço de todo mundo - da igreja, da cidadania, dos partidos, de quem for. Essa é a batalha deste ano. Com acolhimento, preciso criar um ambiente para trazer o aluno para a escola. Tem também os professores, que passaram um ano muito difícil. E eles precisam ganhar prioridade na vacinação. A gente precisava sinalizar que isso é importante. Falta no Brasil essa vontade de colocar a criança no centro (das políticas públicas)."
A evasão e a repetência escolares são também uma grande fonte de desperdício de recursos, uma vez que mantêm o sistema educacional mais inchado para atender alunos que demoram a completar - ou sequer completam - o ciclo de anos de estudo.
"Quando a criança sai ou toma bomba, eu tenho um sistema maior do que preciso. Então a criança precisa ficar na escola."
O mais recente Índice Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal mensuração da qualidade do ensino no país e divulgado pelo Ministério da Educação em setembro, apontou avanços na educação geral do Brasil, embora poucos Estados tenham alcançado as metas previstas.
Mesmo esses avanços devem ser lidos com cautela, explica Soares, porque mascaram desigualdades educacionais invisíveis aos dados.
"Eu colocaria a 'melhora no Ideb' entre aspas. Porque o Ideb (mensura o desempenho escolar) das crianças que estão na escola. As que saíram, já era. É algo tipicamente brasileiro", diz o pesquisador.
"Imagina: você é brasileiro e saiu da escola por um motivo qualquer. Você é quem mais precisa da escola. Mas você não impacta o indicador. Isso é de um cinismo estrutural. (...) Além disso, temos uma expectativa muito baixa" em relação à educação pública, argumenta.
"A pandemia trouxe problemas novos para os quais não temos solução. Como fazer a escola funcionar em uma situação como esta? Mas tem uma coisa importante que a pandemia está nos ensinando a amadurecer à força: está nos dizendo que, para vencer a desigualdade, preciso da tecnologia", defende Soares.
"Na saúde, estamos perto de ter um prontuário único (para cada paciente), algo que traz muitos problemas em potencial, mas também muita facilidade: quando você for atendida, o médico vai conhecer toda a sua história. Mas na educação a gente não tem esses dados. Com a tecnologia, talvez a gente tenha uma ferramenta (para acompanhar todo o desenvolvimento escolar), não preciso esperar até o aluno estar no cursinho (para diagnosticar problemas)."
Um avanço que tem sido comemorado por Soares e outros especialistas em educação é a aprovação recente, pelo Congresso, do Fundeb, fundo de dinheiro público para a educação básica que passa a ser permanente e obrigatoriamente ganhará mais recursos por parte do governo federal.
"Isso é uma coisa boa, mas temos que usar bem: oferecendo escola de tempo integral, para professor e aluno. (...) E uma quantidade enorme de jovens gostaria de, durante o ensino médio, ter alguma certificação (técnica). Uma vez, uma pessoa que veio instalar uma antena na minha casa me disse: 'terminei o ensino médio e não sabia nada. Precisei pagar (para se capacitar e conseguir seu emprego)'. De novo, olha como o país é: não deu nada a ele e, para ele ter emprego, teve de pagar."
"Então essa é uma primeira mudança razoável: junto com a escola, ter uma certificação. E colocar o ensino superior no horizonte (dos jovens de escolas públicas). Tem muita iniciativa interessante. As escolas de tempo integral de Pernambuco, por exemplo, têm uma disciplina de projeto de vida. Não é dizer ao aluno: 'sonhe'. É dizer 'você está aqui, pense no que vai ser feito (para crescer)'".
Mas o ponto de partida é de fato enxergar cada brasileiro como merecedor de uma educação de alta qualidade e de acesso pleno à cidadania, opina Soares.
"O Brasil é um país que tem uma porta de entrada para a cidadania. Nós precisamos vencer isso. É uma decisão que precisa estar na nossa cabeça: todo brasileiro tem que ser brasileiro. O sonho brasileiro é ser o opressor. 'Eu quero estar no seu lugar'. (Mas) o projeto que vai nos mover é dizer: 'eu vou puxar todo mundo para cima'."
Fonte: BBC News Brasil