O governo brasileiro rejeitou aderir a uma proposta de Índia e África do Sul para que todas as patentes de remédios, vacinas e produtos de combate à covid-19 sejam suspensas.
O projeto foi apresentado pelos dois países emergentes em uma reunião da Organização Mundial do Comércio, nesta sexta-feira, e contava com o apoio de algumas das principais instituições de saúde do mundo, entre elas a Organização Mundial da Saúde, UNAids e a Médicos Sem Fronteira, além de diferentes países em desenvolvimento.
O Brasil, porém, optou por se distanciar do bloco de economias emergentes e se aliar à posição dos países ricos. Sem um acordo, a reunião na OMC teve de ser suspensa para permitir que governos possam realizar consultas.
O racha na comunidade internacional, porém, evidenciou a incapacidade de uma resposta coordenada à crise.
O projeto prevê que, enquanto uma imunidade de rebanho não for atingida no mundo, patentes sobre produtos que podem dar uma resposta à pandemia não devem ser aplicadas. Isso, na prática, permitiria que governos de países mais pobres possam oferecer versões genéricas dos mesmos produtos, desafogando seus orçamentos e permitindo a chegada da cura para todos.
Além de indianos e sul-africanos, a proposta foi apoiada por diferentes países em desenvolvimento como Quênia, Nigéria, Bangladesh, Sri Lanka e Paquistão.
O Brasil, porém, tem uma visão diferente. Para o Itamaraty, os acordos de propriedade intelectual - conhecidos como Trips - já deixam brechas para a quebra de patentes em caso de necessidade e, portanto, não haveria a necessidade da suspensão generalizada.
"Neste momento, não estamos convencidos de que um waiver ao acordo TRIPS nos garantiria uma melhoria significativa do acesso, ao mesmo tempo em que poderia dar sinais errados aos inovadores e, potencialmente, dificultar os esforços para produzir as soluções de que precisamos", disse a delegação brasileira em Genebra.
O Itamaraty deixou claro que governos devem procurar dialogar para avaliar possíveis dificuldades concretas para implementar as flexibilidades do acordo. Mas o Brasil também indicou que países devem ser "honestos" e "reconhecer que nem todas as dificuldades encontradas são atribuíveis ao próprio acordo".
"Elas podem estar relacionadas a limitações na legislação nacional ou dizer respeito a uma gama maior de questões que estão fora do escopo do acordo e podem ter impacto no acesso à terapêutica e tecnologias relacionadas à COVID", disse.
"O Brasil continua aberto, como sempre, a discutir quaisquer propostas que visem melhorar o sistema de propriedade intelectual e seu equilíbrio de interesses, de acordo com as legítimas aspirações dos Estados Membros", completou.
O governo saiu em defesa do atual sistema que, segundo Brasília, foi "previsto para atingir um equilíbrio entre acesso e proteção, entre interesse público e privado".
"Acreditamos que o Acordo TRIPS nos fornece ferramentas e espaço político para que os Estados Membros tomem medidas para proteger a saúde pública", explicou.
"O Brasil tem sido um promotor histórico das flexibilidades do TRIPS e do direito dos membros da OMC de utilizar, em toda a sua extensão, as disposições do Acordo TRIPS", disse.
"Acreditamos, portanto, que soluções podem ser legitimamente buscadas dentro do sistema", disse a delegação.
O governo ainda deixou claro que a pandemia é um "exemplo do equilíbrio que devemos alcançar com o sistema de propriedade intelectual". "Por um lado, queremos que os sistemas de inovação (públicos e privados) sejam plenamente mobilizados na busca de soluções para a pandemia. Por outro lado, é necessário que qualquer solução produzida esteja amplamente disponível", defendeu.
Para Brasília, a atual crise deve ser aproveitada para que governos falem das dificuldades concretas enfrentadas na implementação das flexibilidades do acordo.
O governo da Índia rejeitou a postura do Brasil e indicou que o sistema não é suficiente para lidar com a pandemia. De acordo com os indianos, as regras nos acordos não estipulam a suspensão de propriedade intelectual para máquinas e equipamentos. Nova Delhi ainda lembrou que, desde que o acordo de patentes foi criado em 2003, suas flexibilidades foram usadas apenas em uma ocasião, o que demonstra as dificuldades de aplicar o tratado.
"Chegou o momento de colocar a vida acima de qualquer outro aspecto", indicou a delegação indiana, no encontro. Para eles, o desenvolvimento e acesso de remédios estão limitados por patentes.
Se não bastasse, os indianos apontam como dados europeus revelam que governos destinaram 16 bilhões de euros em recursos públicos para ajudar empresas a acelerar a produção de remédios. Mas, apesar disso, nenhuma empresa se comprometeu a abrir mão de patentes.
A postura do Brasil se distancia de uma tradição de décadas do país de lutar pelo acesso a remédios. No final dos anos 90, diante da Aids, o Itamaraty liderou um processo de transformação das regras internacionais. Um acordo acabou sendo fechado, com um tratado que permitiria que, em caso de pandemias, países poderiam quebrar patentes.
Mas, segundo especialistas e governos de países mais pobres, o acordo jamais conseguiu ser realmente aplicado. Governos de países ricos passaram a ameaçar lideranças que optassem por recorrer ao acordo de propriedade intelectual, tornando inviável politicamente a quebra de uma patente.
A nova postura do Brasil é de negociar e manter uma relação positiva com as empresas.
O Brasil não foi o único país a rejeitar. A UE indicou já antes do encontro que um entendimento precisava ser encontrado para que todos tenham acesso aos produtos. Mas que quebrar patentes não seria uma opção, inclusive por minar os incentivos aos inovadores.
A pressão promete não acabar. Enquanto o debate ocorria na OMC, o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, anunciou nesta sexta-feira que sua agência estava apoiando a proposta dos indianos.
Mais de 300 entidades médicas e da sociedade civil internacional deram apoio ao projeto. Em nota, a UNAIDS também indicou que "apoia plenamente a proposta, que reflete a urgência e a emergência sanitária global que a COVID-19 representa". Para Winnie Byanyima, diretora-executiva da UNAIDS, "sua adoção permitirá que os países trabalhem juntos para estabelecer estratégias nacionais e multilaterais para promover a inovação e o acesso a medicamentos, diagnósticos, vacinas e outras tecnologias de saúde".
"A comunidade da AIDS sabe que, para enfrentar as ameaças à saúde pública, é essencial um foco na desigualdade, incluindo desigualdades no acesso a soluções, sejam vacinas, diagnósticos ou terapêuticas", apontou.
"Não podemos repetir as lições dolorosas dos primeiros anos da resposta à Aids, quando pessoas em países mais ricos tiveram acesso à saúde, enquanto milhões de pessoas em países em desenvolvimento foram deixadas para trás", disse Byanyima. "Se continuarmos agindo como de costume, falharemos em fornecer acesso justo aos tratamentos da COVID-19 para todos os necessitados", alertou.
Antes do encontro, uma carta assinada por mais de mil cientistas, pesquisadores, médicos e instituições foi enviada ao Itamaraty e criticava a postura do governo brasileiro. Os especialistas ainda se distanciavam da postura do governo e prestavam seu apoio à iniciativa sul-africana.
Fonte: UOL