O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Gebreyesus, aproveitou a reunião bilateral com o governo brasileiro, uma das primeiras desde o início da pandemia da covid-19 - para pedir que as autoridades nacionais apoiem a suspensão de patentes de vacinas.
A OMS defende a proposta de cem países em desenvolvimento que querem que a propriedade intelectual sobre esses produtos seja suspensa enquanto a crise assolar o mundo. Já o Brasil, depois de meses contribuindo para minar o projeto dos emergentes e criticar a ideia, hoje ainda hesita em dar seu apoio a uma suspensão generalizada de todas as patentes. Mas sofre uma pressão cada vez maior, inclusive por parte do Congresso.
A questão sobre a propriedade das vacinas está em debate na Organização Mundial do Comércio, que vive um impasse diante do racha na comunidade internacional.
O recado da OMS foi dado no sábado, durante a reunião de Tedros com o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. O encontro marca uma nova postura do governo que, por meses, fez questão de lutar contra qualquer ação internacional que pudesse significar um fortalecimento da posição internacional dos organismos multilaterais.
Sob o comando de Ernesto Araújo, a ordem no Itamaraty era a de evitar qualquer iniciativa global, dentro do contexto da luta do Itamaraty contra o que a ala mais radical do bolsonarismo chamava de "globalismo". Durante os meses da gestão de Eduardo Pazuello, no ministério da Saúde, o princípio defendido pelo Itamaraty foi seguido e o governo brasileiro se ausentou dos principais debates na OMS.
Mas a brecha aberta pelo Brasil foi usada pela agência mundial para também pressionar por mudanças mais profundas por parte do governo de Jair Bolsonaro.
Por meses, o Brasil foi o único país em desenvolvimento a criticar a proposta dos emergentes de suspender as patentes de vacinas. A ideia é de que, sem o monopólio nas mãos das grandes farmacêuticas, laboratórios em todo o mundo poderiam também fabricar as doses a partir de acordos e transferência de tecnologia, além de ter um preço mais baixo.
Com uma demanda global por vacinas e sem a capacidade de produção suficiente, a proposta é vista como uma forma de superar o impasse no acesso ao único produto que, hoje, pode colocar fim à pandemia.
Antes da derrota de Donald Trump, nos EUA, o Itamaraty insistia que a proposta - liderada pela África do Sul e Índia - não garantiria maior acesso às vacinas. Além disso, alertava que a iniciativa poderia minar os incentivos para que o setor privado investisse na busca por vacinas. Essa era a mesma posição adotada pelos países ricos, detentores da tecnologia.
A posição brasileira foi questionada inclusive por especialistas, como o Médicos Sem Fronteira, que alertaram que essas vacinas apenas foram produzidas graças ao incentivo bilionário de governos. Já a entidade Public Eye chegou a apontar que quase US$ 100 bilhões foram destinados às farmacêuticas em recursos públicos.
O governo brasileiros, nos diversos debates na OMC, sugeriu que os acordos internacionais vigentes já prevêem a possibilidade de uma quebra de patentes e que, portanto, não há necessidade de uma suspensão completa de todo o direito à propriedade.
O Brasil também passou a apoiar a ideia da nova gestão da OMC de buscar uma terceira via. Nesse contexto, não haveria uma quebra de patentes. Mas acordos concretos para garantir a transferência de tecnologia entre as grandes multinacionais e laboratórios pelo mundo. Um dos modelos estudados é o da AstraZeneca, que fechou entendimentos com a Fiocruz e outros centros pelo mundo.
Entre os países emergentes, há uma suspeita de que tal busca de acordos voluntários possa levar meses para se concretizar.
No encontro entre Tedros e Queiroga, o governo brasileiro insistiu sobre a possibilidade de ampliar o abastecimento de vacinas da OMS, por meio da Covax. Aos interlocutores na Organização Panamericana de Saúde, braço regional da OMS, o ministro indicou que poderia ampliar as compras na Covax, saltando de 10% para 20%, o que significaria um acesso a mais de 80 milhões de doses.
Até maio, o Brasil deve receber 9 milhões de doses das 42 milhões que comprou do mecanismo criado pela Covax. Mas apenas recebeu por enquanto 1 milhão.
O pedido brasileiro por mais vacinas não deve resultar de uma forma imediata em mais doses. Na OMS, a mensagem é de que o abastecimento global vive uma situação crítica e as encomendas já realizadas sofrem para serem atendidas.
Fontes dentro da entidade apontam que se o Brasil tivesse feito um pedido maior antes, poderia estar contemplado por um volume maior de vacinas no primeiro semestre. Mas tendo feito o pedido apenas agora, elevar as doses ao Brasil e deixar outros países pobres com dificuldade de abastecimento abriria uma crise política importante na agência.
A reunião ainda foi marcada por propostas da parte da OMS para ampliar a cooperação com o Brasil, na esperança de frear a pandemia. Hoje, o país representa um terço das mortes diárias pela covid-19.
Tedros sugeriu encontros regulares com o Ministério da Saúde para auxiliar na resposta à crise sanitária. A OMS ainda se dispôs a mandar um time técnico para ajudar o Brasil a aumentar sua produção local de vacinas, inclusive para eventualmente poder exportar.
Mas Tedros também insistiu que, mesmo com a vacinação avançando, o Brasil precisa manter medidas como o uso de máscara, lavar as mãos, arejar ambientes e promover distanciamento físico.
Dentro da OMS, a aproximação com o Brasil foi comemorada. A entidade considera que uma eventual vitória do país contra a covid-19 pode ser decisiva hoje para reduzir os números no mundo.
Na cúpula da OMS, Jair Bolsonaro já foi chamado de "louco" por sua atitude diante da doença. A ordem interna na agência é a de usar a brecha aberta por Queiroga para permitir uma aproximação maior e convencer o governo a aderir às principais recomendações dos cientistas da entidade.
Fonte: UOL