Cotidiano

A internet como a conhecemos pode estar acabando





Podemos estar nos aproximando da "splinternet", ou uma coleção de diferentes internets, cujos limites são determinados por fronteiras nacionais ou regionais

A Europa está discutindo uma regulamentação que poderia impor proibições temporárias a empresas de tecnologia dos EUA que violem suas leis. Os Estados Unidos estavam prestes a proibir o TikTok e o WeChat no país, embora o novo governo de Joe Biden esteja repensando essa ação. A Índia, que baniu esses dois aplicativos, bem como dezenas de outros, agora está brigando com o Twitter.

Por fim, neste mês o Facebook entrou em confronto com o governo australiano sobre uma proposta de lei que exigiria que a rede social pagasse às empresas de notícias. A empresa decidiu brevemente impedir que os usuários compartilhassem links de notícias no país em resposta à lei, com o potencial de mudar drasticamente o funcionamento de sua plataforma de um país para o outro. Na terça-feira (23), o Facebook, enfim, chegou a um acordo com o governo australiano e concordou em restaurar as páginas de notícias. O acordo relaxou parcialmente os requisitos de arbitragem com os quais o Facebook discordava.

Em seu anúncio do acordo, no entanto, o Facebook insinuou a possibilidade de confrontos semelhantes no futuro. “Continuaremos a investir em notícias globalmente e a resistir aos esforços dos conglomerados de mídia para promover estruturas regulatórias que não levem em conta a verdadeira troca de valor entre editoras e plataformas como o Facebook”, afirmou Campbell Brown, vice-presidente de parcerias globais de notícias do Facebook, em uma declaração oficial.

No entanto, se tais acordos territoriais se tornarem mais comuns, a internet conectada globalmente que conhecemos se tornará mais parecida com o que alguns apelidaram de “splinternet”, ou uma coleção de diferentes internets, cujos limites são determinados por fronteiras nacionais ou regionais.

Uma combinação de nacionalismo crescente, disputas comerciais e preocupações sobre o domínio do mercado de certas empresas globais de tecnologia gerou ameaças de repressão regulatória em todo o mundo. No processo, essas forças não estão apenas derrubando as empresas de tecnologia que construíram negócios massivos com a promessa de uma internet global, mas também a própria ideia de construir plataformas que podem ser acessadas e usadas da mesma forma por qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo.

As rachaduras só parecem estar ficando mais profundas. 

“Acho que há uma tendência global de fragmentar a internet muito mais do que no passado”, disse Daphne Keller, diretora do programa de regulamentação de plataforma do Centro de Política Cibernética da Universidade de Stanford, à CNN Business.

Como os eventos recentes mostraram, uma plataforma não precisa ser banida ou desligada imediatamente para que essa fragmentação aconteça. Em resposta ao esforço da Austrália para fazer com que o Facebook pagasse aos editores, a empresa parou de mostrar links de veículos de imprensa para os usuários australianos; pessoas de fora do país também não podiam mais acessar o conteúdo dos meios de comunicação australianos pela rede social. A mudança temporária foi contra a própria premissa de que a internet servia como uma ferramenta para o livre fluxo de informações globalmente.

Na Índia, quando foi avisado que era “bem-vindo para fazer negócios”, mas “também devia respeitar as leis indianas”, o Twitter buscou um meio-termo, retendo algumas contas que usavam o que o governo chamou de hashtags “incendiárias e sem base”, o que significa que essas contas não eram visíveis dentro do país, mas ainda podiam ser acessadas fora de suas fronteiras. (O país também mostrou uma maior disposição de acompanhar empresas estrangeiras de tecnologia, propondo grandes restrições em suas operações e, em meio a um impasse diplomático com a China, banindo o TikTok e dezenas de outros aplicativos de propriedade de chineses.)

É um cenário muito diferente daquele que permitiu às empresas de tecnologia dos EUA acumularem uma enorme riqueza e poder. Com notáveis exceções, como China e Coreia do Norte, o Facebook e seus pares foram capazes de lançar seus produtos em todo o mundo com pouca resistência. Agora, essa abertura pode não ser mais dada como líquida e certa.

“O que é legal na Suécia não é legal no Paquistão, então temos que encontrar uma maneira de reconciliar isso com o funcionamento da internet”, disse Keller. O resultado é que “as plataformas, de forma voluntária, ou os governos, à força, estão erguendo barreiras geográficas, de modo que vemos coisas diferentes em um país e em outro”.

O grande recuo

Embora o Facebook não seja a única empresa de tecnologia na mira de governos em todo o mundo, ele talvez seja o mais emblemático do que qualquer outro negócio do Vale do Silício na promessa de uma internet global que vai contra as leis de vários países.

Cinco anos atrás, o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, revelou seu objetivo de alcançar 5 bilhões de usuários, ou a maioria da população mundial. A empresa já tem mais de 3 bilhões de usuários ativos mensais em seus vários aplicativos, uma prova de sua rápida expansão em todo o mundo.

“Queremos fazer com que qualquer pessoa, em qualquer lugar – uma criança crescendo na Índia rural que nunca teve um computador – possa ir a uma loja, comprar um telefone, ficar online e ter acesso a todas as mesmas coisas que você e eu gostamos na internet”, disse Zuckerberg em uma entrevista de 2013 a Chris Cuomo da CNN.

Mesmo na China, onde o aparato de censura online do governo, conhecido como Grande Firewall, bloqueou as empresas de tecnologia ocidentais por décadas, o Facebook e o Google buscaram fazer concessões para ter permissão para entrar no mercado (embora com pouco sucesso).

Agora, o Facebook está se voltando para o que se tornou um manual cada vez mais testado para a indústria de tecnologia: a ameaça de retirar seus produtos dos mercados em face de uma regulamentação desfavorável.

Em 2014, o Google encerrou seu serviço Google News na Espanha depois que o país aprovou uma lei semelhante à que a Austrália está considerando agora. Outra ação na Austrália foi ameaçar retirar seu mecanismo de busca do país devido à mesma lei de mídia. No fim, a empresa cedeu e assinou acordos com algumas das principais editoras do país.

Desta vez, pelo menos, o manual pareceu funcionar um pouco para o Facebook. Mas há sinais de que países ao redor do mundo (incluindo os Estados Unidos) estão mais dispostos a jogar duro e seguir os passos uns dos outros para controlar a Big Tech. Em última análise, as empresas de tecnologia dependem do acesso contínuo a bilhões de usuários em todo o mundo, e os governos mostraram que estão dispostos a cortar esse acesso em nome da proteção de seus cidadãos e da soberania online.

As apostas só aumentarão se mais governos entrarem no movimento.

“É uma espécie de jogo de estratégia”, disse Sinan Aral, professor da Sloan School of Business do MIT e autor de “The Hype Machine: How Social Media Disrupts Our Elections, Our Economy and Our Health” (“A máquina do hype: como a mídia social atrapalha nossas eleições, nossa economia e nossa saúde”, sem edição no Brasil).

Aral diz que empresas como Facebook e Google encontrarão uma ladeira perigosa se começarem a sair de todos os mercados que lhes pedem que paguem por suas notícias, o que “limitaria de forma severa” o conteúdo que podem servir à sua base global de usuários.

“Eles têm interesse em tentar forçar qualquer mercado a não impor tais regulamentações, ameaçando se retirar", disse ele. “O outro lado está basicamente dizendo: ‘Se você não pagar pelo conteúdo, não terá acesso ao nosso mercado de consumidores ou ao conteúdo desse mercado’”.

Fragmentação x aglutinação

A briga sobre notícias na Austrália é uma parte relativamente pequena do conflito entre tecnologia e governos, que tem se concentrado principalmente em questões como censura, privacidade e competição. Mas a resposta à atitude do Facebook na Austrália mostrou que um movimento internacional para controlar as Big Techs pode estar em crescimento, bem como um potencial de fragmentação adicional de como os serviços de internet funcionam de um país para o outro.

Enquanto o governo enfrentava o Facebook na semana passada, o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, emitiu um alerta para o gigante das redes sociais: o que você faz aqui pode prejudicá-lo no futuro em outros países.

“Essas ações só vão reiterar as preocupações que um número cada vez maior de países está expressando sobre o comportamento das grandes empresas de tecnologia, as quais pensam ser maiores do que os governos, e que as regras não se aplicam a elas”, escreveu o primeiro-ministro em um post no Facebook. “Elas podem estar mudando o mundo, mas isso não significa que têm o comando”.

Na terça-feira (23), Morrison disse que a decisão do Facebook de restaurar as notícias é “bem-vinda”, acrescentando que o governo continua comprometido em prosseguir com sua legislação para garantir que “jornalistas e agências de notícias australianas sejam devidamente remunerados pelo conteúdo original que produzem”.

Diversos outros países, incluindo o Reino Unido e o Canadá, estão considerando uma legislação semelhante contra empresas de redes sociais, e muitos deles estão conversando entre si sobre a melhor forma de fazer isso.

“Seria extremamente útil se os governos se unissem em algum tipo de processo transnacional e chegassem a um tratado ou padrão sobre quem consegue alcançar e afetar o conteúdo e as informações fora de seu território nacional”, disse Keller, de Stanford, “porque isso é o que muitos deles estão tentando fazer, mas não o fizeram, e assim, como resultado, tem-se uma colcha de retalhos muito fragmentada”.

No entanto, se essa fragmentação crescente seguir seu curso natural, as consequências podem ser terríveis.

“Se o resultado final for a separação de plataformas de redes sociais em cada país ou mercado importante, então teremos um ecossistema de informações completamente bifurcado ou fragmentado em todo o mundo”, alertou o professor Aral. “O prognóstico é uma sociedade com conjuntos de informações completamente diferentes sobre eventos locais, acontecimentos mundiais, e talvez uma visão de mundo muito fragmentada da realidade”.

Fonte: CNN Brasil