O silêncio de Jair Bolsonaro (sem partido) durante todo o domingo (17), dia em que o país celebrava a autorização para uso emergencial das vacinas CoronaVac e AstraZeneca, expôs a sensação de derrota que imperava nos bastidores do governo.
A irritação com o ato do governador João Doria (PSDB), que deu início simbólico à imunização no país a contragosto do Ministério da Saúde, acabou sendo a cereja de um bolo que já vinha sendo fermentado desde as últimas semanas.
Depois de falhar em definitivo na tentativa de trazer as 2 milhões de doses da AstraZeneca (vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford) que foram adquiridas na Índia, na última sexta-feira (15), o governo ficou refém da CoronaVac para que pudesse começar o processo de vacinação —marcado inicialmente para 20 de janeiro, às 10h.
Em live em outubro, Bolsonaro disse que governo não compraria Coronavac
TV FolhaO episódio evidenciou um fracasso justamente no âmbito que seria de domínio do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello: a logística. General do Exército, ele ficou conhecido por ter se especializado nessa área.
Para piorar, do outro lado do balcão há o governo de São Paulo, que foi o responsável por apostar na CoronaVac logo no começo da pandemia e, em parceria com o laboratório chinês Sinovac, desenvolveu os estudos e testes clínicos no Butantan (SP).
O instituto possui 6 milhões de doses, das quais cerca de 4,5 milhões já estão rotuladas e prontas para uso. Há mais quase 5 milhões em preparação para envase.
Com Bolsonaro em silêncio durante todo o domingo —sobretudo depois que a Anvisa deu, à tarde, o aval ao uso emergencial das vacinas—, o protagonismo que seria naturalmente do Ministério da Saúde (responsável por executar o Plano Nacional de Imunização) caiu no colo de Doria e do governo de São Paulo.
Um auxiliar do presidente minimizou a repercussão do episódio da vacinação simbólica, alegando que a "jogada de marketing" —mesma expressão utilizada ontem por Pazuello ao criticar o governador de SP— teria um efeito curto e seria esquecida à medida que o Ministério da Saúde começar a imunizar os brasileiros em massa.
No entanto, o interlocutor afirmou reconhecer que o silêncio de ontem pode ser interpretado como uma consequência do sentimento de revés.
Doria, que é um dos principais adversários políticos de Bolsonaro no momento e deve enfrentá-lo na eleição presidencial em 2022, acabou conseguindo projeção nacional como um dos responsáveis pelo avanço da CoronaVac e por ter tido a iniciativa de dar a largada no processo de vacinação contra a covid-19.
Além disso, ainda escolheu uma profissional de saúde, a enfermeira Mônica Calazans, uma mulher negra residente na periferia de São Paulo, para ser a primeira a receber o imunizante.
Apesar de considerarem uma boa notícia para os rumos do combate à pandemia, auxiliares da chefia do Executivo ouvidos pela reportagem avaliam, em tom de resignação, que há sentimento de fracasso quanto às narrativas que o presidente vem tentando emplacar recentemente. Em especial, a tese de que o "tratamento precoce" (com hidroxicloroquina) seria mais eficaz do que a vacinação.
Na manhã de hoje, ao deixar o Palácio da Alvorada, Bolsonaro bateu na mesma tecla, mas com uma ressalva: o próprio admitiu que há "insistência" em relação ao discurso em questão.
"Não desisto do tratamento precoce. Não desisto. A vacina é para quem não pegou ainda. E essa vacina é 50% de eficácia. Jogar uma moedinha para cima, é 50% de eficácia", disse ele, em referência ao percentual de eficácia geral da CoronaVac —que, na verdade, é de 50,38%, acima do mínimo exigido pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Para piorar o humor de Bolsonaro, a insatisfação com o trabalho do ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, é cada vez maior. O episódio do fracasso na importação da Índia, a repercussão negativa de suas falas (a exemplo do "dia d, hora h") e a demora na resolução de questões burocráticas envolvendo as vacinas são desgastes que afetam diretamente a imagem do presidente, mas que compõem uma fatura a ser cobrada do ministro futuramente.
Segundo revelou hoje a colunista do UOL Carla Araújo, há uma crescente pressão entre pessoas próximas ao presidente para que Pazuello seja demitido. O governante, no entanto, avisou que está disposto a mantê-lo no cargo.
A postura reativa do Ministério da Saúde diante do protagonismo do governo de SP também é um fator que também pode ajudar a entender o porquê da derrota do governo neste domingo.
Pazuello até tentou impor o envio imediato das 6 milhões de doses da CoronaVac que se encontram armazenadas no Instituto Butantan. Isso seria o suficiente para impedir que Doria desse o pontapé inicial da vacinação no Brasil após a reunião da Anvisa.
Após a inclusão da CoronaVac no PNI (Programa Nacional de Imunização), o Ministério da Saúde e o Butantan assinaram contrato de aquisição com cláusula de exclusividade —ou seja, todas as vacinas produzidas no local só podem ser repassadas para o governo federal. É com esse argumento que Pazuello acusa o estado de estar "em desacordo com a lei".
SP alega, por outro lado, que não faria sentido algum encaminhar 100% das doses da vacina, pois o estado tem direito a uma parcela de cerca de 20% delas de acordo com os critérios de proporcionalidade. Com esse argumento, o Butantan se preparou para ter a sua cota da CoronaVac e entregar o restante ao ministério.
Depois do chapéu de ontem, o Ministério da Saúde até tentou atrair a atenção dos governadores —principalmente os que não gostaram da "jogada de marketing" de Doria— para um evento na manhã de hoje, que simbolizaria o início da distribuição das doses da CoronaVac em todo o país. Este é o primeiro passo para a execução do Plano Nacional de Imunização.
No entanto, o que para ser uma agenda positiva do governo acabou se tornando um problema. Segundo a coluna Painel, da Folha de S.Paulo, a pasta chefiada por Pazuello mudou horários dos voos de entregas de vacinas para os estados. O órgão fez mais de uma vez alterações entre a madrugada e o início da tarde de ontem (18). Pela programação mais atualizada, diversos estados só receberiam os pacotes de noite, atrasando o início da imunização.
Em alguns casos, autoridades estaduais já estavam posicionadas nos aeroportos à espera da carga quando foram surpreendidas pelas mudanças. Ao menos seis locais que receberiam antes das 16h foram informados que a entrega só aconteceria durante a noite.
Além de manter o seu posicionamento entusiasta quanto à hidroxicloroquina e o "tratamento precoce", Bolsonaro acabou isolado como a única força política na contramão do entusiasmo pela autorização para uso emergencial das vacinas.
Os filhos do presidente até tentaram, por meio de publicações nas redes sociais, capitalizar politicamente a partir da autorização dada pela Anvisa. A repercussão, no entanto, não produziu efeito significativo.
Assim como SP, outros estados, a exemplo do Rio de Janeiro, anunciaram que a imunização começaria já na segunda-feira (18) —dois dias antes da data defendida pelo Ministério da Saúde. No caso da capital fluminense, a primeira vacina aplicada acontecerá no Cristo Redentor, cartão postal da cidade.
Pressionado então pelos governadores, Pazuello recuou na manhã de ontem e disse que algumas localidades poderiam ter a vacinação ao final do dia.
Em mais uma queda de braço com Doria, Pazuello também tentou atribuir ao Ministério da Saúde o crédito pelo avanço nas pesquisas e no desenvolvimento da CoronaVac. Ele alega que os recursos investidos pelo Butantan e pelo estado de São Paulo saíram do SUS (Sistema Único de Saúde). Essas informações, no entanto, ainda não foram comprovadas. SP nega que o dinheiro seja de origem federal e acusa Pazuello de mentir.
Fonte: UOL