Política

'Não faço milagre': Bolsonaro usa a mesma desculpa para covid e desemprego





Da mesma forma que o governo federal não apresentou um plano de vacinação que possa ser chamado como tal, também não trouxe a público um plano nacional para geração de empregos formais.

Até as justificativas frente aos problemas são semelhantes. Diante das mortes por covid no final de abril, ele disse: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre". E diante da falta de um plano para gerar emprego, em maio do ano passado, ele falou: "Tenho pena, tenho. Faço o que for possível, mas não posso fazer milagre, não posso obrigar ninguém a empregar ninguém".

Essas declarações servem como gabarito para a interpretação da narrativa presidencial frente a esses dois grandes desafios. E o discurso que vende a terceirização da responsabilidade tem dado certo, como mostra pesquisa Datafolha sobre sua popularidade, que se mantém estável.

Ele não precisa lamentar, nem ter pena. Mas assumir o papel de presidente da República que os brasileiros lhe conferiram pelo voto, articulando e planejando uma vacinação em massa o mais rápido possível, ao invés de usar a questão como campo de batalha para sua reeleição. E, ao mesmo tempo, articular e planejar a geração de postos de trabalho de qualidade, para além da ladainha da defesa de redução de proteções trabalhistas em nome de um crescimento econômico que sempre depende da reforma seguinte, a fim de ajudar os 14,1 milhões que procurar serviço.

Bolsonaro gasta muita energia para impedir que a vacina desenvolvida na China e produzida pelo Instituto Butantan (por conta de um acordo assinado com seu arquirrival, o governador João Doria) seja aplicada antes de uma que ele abrace. E para encontrar formas de evitar que seu filho Flavio Bolsonaro se torne réu por desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Seria realmente um "milagre" se sobrasse tempo para pensar no bem-estar da população.

Bolsonaro deve estar torcendo por "segunda onda"

Bolsonaro ganhou um presente quando deputados e senadores rejeitaram sua proposta original de um auxílio emergencial de R$ 200 e forçaram-no a subir o valor. Sim, se dependesse de seus planos, os mais pobres iam ficar à míngua durante a pandemia.

Ganhou não apenas popularidade decorrente disso, como a possibilidade de explorar uma nova narrativa, a de "pai dos pobres", que se encaixa como uma luva ao seu estilo autoritário e populista. Jair Messias gosta de ser fotografado na saída de aeroportos, nos braços de apoiadores, em enquadramentos que fazem com que a multidão pareça maior do que realmente é, e de viajar o Brasil para inaugurar obras tocadas por gestões passadas.

Pesquisa Datafolha, divulgada nesta segunda (14), mostra que sua aprovação segue estável em 37%, sustentada pelo bolsonarismo-raiz (que pula no precipício se ele mandar) junto com parte da parcela mais pobre - que não é, necessariamente, bolsonarista, apenas age de forma pragmática em um país que lhe deu as costas.

O ministro da Economia Paulo Guedes já disse que o auxílio emergencial pode ser estendido caso venha uma segunda onda de infecção. Como Bolsonaro já disse que a morte "é o destino de todo mundo", não admiraria se estiver torcendo para que o aumento no número de casos pavimente a manutenção do auxílio. E, portanto, de sua popularidade bombada artificialmente.

Enquanto isso, o governo celebra a geração de postos de trabalho formais apontado pelo Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados). Já era esperado que uma subida rápida aconteceria quando a economia começasse a voltar ao normal. O problema é que há uma montanha de trabalhadores que eram informais, exatamente aqueles que dependiam do auxílio emergencial, que estão procurando serviço sem perspectivas.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua, os desocupados representam 14,1 milhões de pessoas - número que tende a subir a medida em que a economia vá reabrindo.

Nos últimos dias, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu novas "flexibilizações trabalhistas" para beneficiar os mais vulneráveis. Ou seja, tirar proteções para gerar empregos de baixa qualidade em nome do PIB. Na utopia bolsonarista, não é leite e mel que corre pelo meio fio das cidades, mas óleo de peroba.

Prioridade do presidente é a auto-sobrevivência

O presidente deveria ter gastado todas as energias para buscar formas de vacinar a população em um curto espaço de tempo. E saídas para gerar de postos de trabalho, promovendo diálogos entre o setor produtivo, trabalhadores e a sociedade civil. Mas a prioridade presidencial é inaugurar exposição com o guarda-roupa que usou na posse e baratear o preço de armas.

Tivemos uma quarentena absurdamente prolongada porque o próprio presidente agiu para que as pessoas fossem às ruas quando elas deviam ficar em casa.

Poderíamos ter tido um trancamento de três meses e depois reabertura, que teria cronogramas diferentes para diferentes partes deste país continental. Mas ele garantiu que nos arrastássemos por meses, unindo a primeira onda à segunda. Apesar de bradar que estava lutando para evitar desemprego, fazia exatamente o contrário.

Se não for prolongado, os efeitos do auxílio emergencial vão acabar em algum momento. E a dificuldade de uma parcela da população em conseguir emprego pode bater de frente com a visão ultraliberal do governo, do cada um por si e o mercado por todos. Se isso acontecer, ele pode voltar a se apoiar em seu núcleo duro, que acha que a vacina chinesa carrega chips para controlar as pessoas, e em deputados e senadores cuja compra do voto com cargos e emendas garante que um pedido de impeachment continue diante.

A popularidade e a governabilidade têm explicação. "Milagre" é a gente se impressionar com isso.

Fonte: UOL