Saúde

Vacina contra Covid-19 não deverá ser oferecida para toda a população, diz Ministério da Saúde





Pasta diz que não há quantidade disponível para todos e que esquema deve seguir lógica da vacinação da gripe, voltada a grupos específicos

Assim que for aprovada, uma vacina contra Covid-19 não deve ser oferecida para toda a população no próximo ano, mas apenas para grupos de maior risco de exposição e complicações pela doença, informou nesta sexta-feira (27) o Ministério da Saúde.

A pasta está trabalhando na construção de um plano nacional de imunização. Um documento preliminar deve ser compartilhado com especialistas e secretários de saúde na próxima terça-feira (1).

Nas últimas semanas, o ministério já vinha falando em iniciar a vacinação por grupos prioritários, como idosos, pessoas com doenças crônicas e profissionais de saúde, mas não estava claro se pensava em estender a oferta.

"Definimos objetivos para a vacinação, porque não temos uma vacina para vacinar toda a população brasileira. Além disso, os estudos não preveem trabalhar com todas as faixas etárias inicialmente, então não teremos mesmo como vacinar toda a população brasileira", disse a coordenadora do Programa Nacional de Imunizações, Francieli Fantinato. Ela afirma que entre os grupos que hoje não fazem parte de estudos clínicos estão crianças e gestantes.

Com os acordos já assinados até agora, o Brasil pode esperar uma imunização de ao menos um terço da população até o fim do primeiro semestre da população e mais da metade da população até o final de 2021 —a quantidade pode aumentar se forem fechados novos acordos.

O secretário-executivo do Ministério da Saúde, Elcio Franco, disse que a oferta para públicos específicos não significa que as outras pessoas não estarão protegidas.

"O fato de determinados grupos da população não serem imunizados não significa que não estarão seguros, porque outros grupos que convivem com aqueles estarão imunizados e dessa forma não vão ter a possibilidade de se contaminar", afirmou.

Ele comparou a estratégia da vacina contra a Covid-19 com a das campanhas de vacinação contra a gripe, também voltadas a grupos de maior risco de exposição e complicações pelo vírus.

"Nossa meta é vacinar 80 milhões de brasileiros por ano, não falamos em toda a população", afirma. Segundo ele, a mesma discussão ocorre em outros países.

"Quando falamos de vacinação, o mundo não entende que terá que ter vacina para todos. A Covax [iniciativa da Organização Mundial de Saúde que acompanha nove estudos de vacinas para oferta aos países] almeja 2 bilhões. É uma meta ambiciosa, e não se imagina que haverá vacina para todas as pessoas do planeta", diz.

Segundo Fantinatto, a definição dos grupos deve levar em conta o cenário epidemiológico do país e as indicações das eventuais vacinas que estiverem disponíveis.

O Ministério da Saúde já firmou acordos com a farmacêutica AstraZeneca, que desenvolve vacina em parceria com a Universidade de Oxford (Reino Unido), e é signatário da Covax Facility, consórcio de vacinas da OMS (Organização Mundial da Saúde).

Esses acordos, cujos investimentos foram de R$ 2 bilhões, preveem a disponibilidade de quase 143 milhões de doses ainda no primeiro semestre de 2021 —100,4 milhões de doses da AstraZeneca e mais 42 milhões da Covax.

Só o acordo com a AstraZeneca seria suficiente para imunizar, até o primeiro semestre, 50,2 milhões de brasileiros. Com o anúncio da eficácia do imunizantecom uma dose e meia, porém, seria possível vacinar até 65 milhões nessa modalidade.

No entanto, AstraZeneca admitiu erro na administração da dose parcial nos testes e deverá conduzir novos estudos. O esquema de imunização e eficácia do fármaco seguem indefinidos.

A pasta informou, ainda, que a Fiocruz, instituição parceira da vacina da Oxford no Brasil, poderá produzir mais 110 milhões de doses ainda em 2021, se tudo correr como esperado. Para produzi-la, a Fiocruz deve concluir antes o processo de transferência de tecnologia.

A Covax Facility ainda não anunciou previsão de uma vacina com potencial para aprovação no primeiro semestre.

O governo disse também que busca outras fabricantes, cujas vacinas se encontram em fase avançada de desenvolvimento, ainda sem previsão de compras ou acordos.

Além do governo federal, o estado de São Paulo, por meio de parceria com o Instituto Butantan, firmou acordo com a chinesa Sinovac para produzir a Coronavac no país. O acordo prevê 46 milhões de doses, cujas primeiras 120 mil desembarcaram no país no último dia 19. A expectativa do governo paulista é receber 6 milhões de doses até o dia 30 de dezembro.

Em 2021, o Butantan espera receber a matéria-prima para envasar e rotular as 40 milhões de doses restantes no próprio instituto, permitindo, assim, a imunização de mais 23 milhões de brasileiros até a primeira metade do ano que vem.

Após um primeiro momento de envase, o Butantan deverá passar a produzir o imunizante em uma fábrica que está sendo construída para isso, segundo o acordo de transferência de tecnologia. O governo paulista ainda não divulgou detalhes sobre a produção ou esquema de vacinação.

Assim chegamos à conta de ao menos um terço da população vacinada no primeiro semestre (23 milhões de doses da Coronavac mais 50 milhões da vacina de Oxford, considerando duas doses), e mais da metade da população até o fim, já que a partir do segundo semestre a Fiocruz vai produzir mais 110 doses, para um total de 65 milhões de pessoas.

No entanto, há ainda muitas questões sobre a duração da proteção e até se as pessoas que já tiveram Covid-19 precisariam se vacinar também.

“Ainda é preciso acompanhar por mais tempo tanto as pessoas vacinadas [nos ensaios clínicos até agora] quanto as infectadas para saber se esse comportamento difere, mas é possível que essa imunidade seja parecida”, diz Esper Kallás, infectologista da Faculdade de Medicina da USP.

Estudos mais recentes apontam que a imunidade conferida pelo coronavírus Sars-CoV-2 deve durar vários meses, mas as vacinas em última fase de testes vão responder à pergunta se a imunidade, seja ela conferida por anticorpos neutralizantes ou por células de defesa, impede a entrada do vírus no organismo ou apenas protege contra a manifestação sintomática da doença.

“A ciência tem mostrado que a detecção de anticorpos neutralizantes é a melhor forma para dizer se uma pessoa está protegida ou não. E as vacinas em fase de testes até agora tiveram, de uma forma geral, uma boa capacidade de induzir esses anticorpos.”

A resposta sobre a durabilidade das vacinas só deve vir com a chamada fase 4, da vida real. Kallás explica que mesmo vacinas consideradas muito boas, como a do sarampo, podem “perder força” ao longo do tempo. Nesse caso, uma combinação de diferentes vacinas, considerando as muitas opções disponíveis no mercado, pode ser mais vantajosa.

Há, ainda, diversos estudos em fase pré-clínica que devem começar os testes em humanos no próximo ano. Essas vacinas, que chegarão mais tarde na corrida, podem conferir uma proteção diferente. É o caso do grupo do Incor (Instituto do Coração), que desenvolve uma vacina contra o Sars-CoV-2 utilizando partículas semelhantes ao vírus (VLPs, na sigla em inglês).

Coordenados por Jorge Kalil, infectologista e ex-diretor do Instituto Butantan, esses testes buscam essa imunidade protetora mais duradoura e, por isso, devem demorar mais até que possa avançar para as etapas clínicas.

O imunizante deve ser apresentado ainda como gota com inoculação nasal ou oral, uma forma mais atraente especialmente para a logística de transporte e distribuição.

Um dos principais entraves das vacinas que utilizam material genético é sua necessidade de conservação a temperaturas muito baixas, até -20˚C (no caso da Moderna) ou ainda a -70˚C (como a da Pfizer). Até agora, o Brasil não dispõe, em sua rede de frio, de ultracongeladores ou veículos que possibilitem a distribuição dessas vacinas em todo o país nem apresentou plano para isso.

Os pesquisadores concordam que investir em fábricas e em pesquisa e inovação é fundamental. A existência de fábricas não só produtoras mas criadoras de tecnologia colocou países como Estados Unidos e China à frente da corrida.

“O Niaid (do governo dos Estados Unidos) já possuía a plataforma tecnológica. Quando surgiu a Covid, eles apenas utilizaram o material genético para desenvolver a vacina (da Moderna). O ideal é que o Brasil tivesse as suas plataformas tecnológicas desenvolvidas e, quando uma pandemia como essa viesse, pudéssemos agir rapidamente”, diz Kalil.

“O grande legado científico da pandemia da Covid-19 será na produção de vacinas”, finaliza Kallás.​

Críticas ao isolamento social

As declarações sobre as vacinas foram dadas em coletiva de imprensa na sede da pasta. No mesmo encontro, representantes do Ministério da Saúde fizeram ataques à defesa do isolamento social, na contramão do recomendado por outras entidades na área da saúde.

Também atribuíram uma redução na mortalidade pela Covid-19 ao que chamam de "tratamento precoce" —não há até o momento nenhum tratamento comprovado contra a Covid que possa ser usado de forma precoce.

O grupo chegou a mostrar um gráfico em que cita duas datas: a entrada do general Eduardo Pazuello como ministro da Saúde e a data de divulgação de um protocolo que amplia o uso da cloroquina, medicamento também sem comprovação de eficácia contra a doença.

Especialistas, porém, têm apontado outros fatores para uma redução na mortalidade que não esses dois pontos. Entre eles está o aprendizado no manejo clínico de pacientes.

Fonte: Folha de São Paulo