Cotidiano

Nobel da Paz vai para Programa Mundial de Alimentação





O prêmio Nobel da Paz é concedido para o Programa Mundial de Alimentação da ONU por seu combate contra a fome e num momento em que o mundo vive uma ameaça sem precedentes diante da explosão da pobreza por conta da pandemia.

A escolha por uma agência das Nações Unidas ainda foi interpretada como uma resposta de Oslo ao surgimento considerado como perigoso de um nacionalismo explícito em diferentes partes do mundo, do populismo de governos e uma mensagem de apoio aos esforços de coordenação diante de desafios globais.

O prêmio é ainda um recado a líderes internacionais sobre a necessidade de que haja cooperação e solidariedade para vencer a pior pandemia em décadas.

Ao explicar sua escolha, Oslo indicou que a decisão foi tomada por conta dos esforços da entidade "para combater a fome, pela sua contribuição para melhorar as condições de paz nas zonas afetadas por conflitos e por atuar como força motriz nos esforços para impedir a utilização da fome como arma de guerra e conflito".

"A necessidade de solidariedade internacional e cooperação multilateral é mais evidente do que nunca", disse a presidente do comitê norueguês do Nobel, Berit Reiss-Andersen. Para a entidade, o Programa Mundial prestou assistência a cerca de 100 milhões de pessoas em 88 países que são vítimas da insegurança alimentar e da fome aguda.

O chefe da entidade, o americano David Beasly, afirmou estar "em choque" diante do prêmio. Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, imediatamente emitiu um comunicado comemorando a decisão de Oslo.

Fome de volta à mesa

A preocupação dos organizadores do prêmio se refere à volta da fome na agenda internacional. Em 2015, o objetivo foi estabelecido para erradicar o problema até 2030. "Nos últimos anos, a situação tomou um rumo negativo. Em 2019, 135 milhões de pessoas sofreram de fome aguda, o número mais elevado em muitos anos. A maior parte do aumento foi causada pela guerra e pelos conflitos armados", alertou Berit Reiss-Andersen.

Para o Comitê do Nobel, a pandemia ameaça aprofundar essa crise. "Em países como o Iemen, República Democrática do Congo, Nigéria, Sudão do Sul e Burkina Faso, a combinação de conflitos violentos e a pandemia levou a um aumento dramático do número de pessoas que vivem à beira da fome. Face à pandemia, o Programa Mundial de Alimentação demonstrou uma impressionante capacidade de intensificar os seus esforços", disse a presidente.

"Até ao dia em que tivermos uma vacina médica, a alimentação é a melhor vacina contra o caos", disse a agência da ONU.

"O mundo corre o risco de sofrer uma crise de fome de proporções inconcebíveis se o Programa Mundial de Alimentação e outras organizações de assistência alimentar não receberem o apoio financeiro que solicitaram", alerta Oslo.

"A ligação entre fome e conflito armado é um círculo vicioso: a guerra e o conflito podem causar insegurança alimentar e fome, tal como a fome e a insegurança alimentar podem provocar conflitos latentes e desencadear o uso da violência. Nunca alcançaremos o objetivo da fome zero, a menos que também ponhamos fim à guerra e aos conflitos armados", indicam os organizadores do prêmio.

Para Oslo, combater a fome é garantir a paz. Com a atribuição deste ano, o Comitê do Nobel "deseja voltar os olhos do mundo para os milhões de pessoas que sofrem ou enfrentam a ameaça da fome".

"O Programa Mundial desempenha um papel fundamental na cooperação multilateral para fazer da segurança alimentar um instrumento de paz, e deu uma forte contribuição para a mobilização dos governos na ONU para combater a utilização da fome como arma de guerra e de conflito", disse Berit Reiss-Andersen.

Crise do Multilateralismo e fortalecimento do nacionalismo

Dentro da ONU, que completa 75 anos em 2020, o prêmio foi celebrado também como um golpe contra vozes que, ao longo dos últimos meses, optaram por atacar a credibilidade da organização, esvaziaram seus fóruns, retiraram apoio ao seus programas e questionaram as recomendações apresentadas pela agência. Entre eles estão presidentes como Jair Bolsonaro e Donald Trump.

Apesar dos apelos incessantes da ONU aos governos por união, a crise sanitária foi respondida por atos de ataques mútuos entre governos, nacionalismos na busca por uma vacina, cortes de fornecimento de equipamentos entre países, populismo e um ataque deliberado contra a ciência.

Se na crise econômica de 2009 o G-20 assumiu as rédeas de uma resposta global e conseguiu evitar o pior, em 2020 o bloco das maiores economias do mundo se manteve profundamente rachado e jamais apresentou um plano coordenado de resgate.

Pega num tiroteio entre China e EUA, a ONU viu o governo Trump ainda anunciar o fim dos repasses para financiar sua agência de Saúde, a OMS, enquanto também deu início a uma retirada do órgão.

Ainda assim, a agência afirma ter distribuído milhões de máscaras para todo o mundo, enviado missões de técnicos a dezenas de países, garantido fornecimento de equipamentos aos países mais pobres e de ter estabelecido as bases para o que será a maior campanha de vacinação da história, a partir de 2021.

Uma vez mais, porém, a disputa política vem impedindo que o projeto ganhe forma. Hoje, a entidade estima que precisa de US$ 38 bilhões para garantir a distribuição de 2 bilhões de doses da vacina ao mundo. Mas conta com apenas US$ 4 bilhões. Não falta dinheiro no mundo. O que falta é um compromisso político para agir de forma coordenada. O valor exigido representa apenas 1% do total que países injetaram para o resgate de suas economias.

O prêmio, ainda que para a agência de alimentos, portanto, foi comemorado no "sistema ONU" como uma espécie de "seguro de vida", diante de um risco real de que seja desmontada e uma ameaça à sua sobrevivência. Os organizadores do prêmio têm plena consciência de seu papel político e usam a escolha justamente neste sentido. Quando a zona do euro estava ameaçada, Oslo premiou a UE.

Agora, o recado é de que a paz apenas será atingida quando houver uma resposta global a um desafio com o potencial de gerar graves distúrbios sociais e mesmo tensão geopolítica. Trata-se de um prêmio ainda em defesa do diálogo e do multilateralismo, ambos sob ataque.

Fonte: UOL