Cultura

Papa Francisco: enfrentar a cultura do descarte com a fraternidade humana





Em entrevista à edição espanhola da revista semanal "Il mio Papa", Francisco aborda vários temas que vão da pandemia e das crises atuais até o "grande desafio social" que devemos enfrentar: a cultura do descarte que “impregnou a nossa maneira de nos relacionar” e que “nos ameaça continuamente”. O Pontífice oferece caminhos para contrastar essa realidade, através da fraternidade humana ao "viver a cultura do receber, do acolher, da proximidade, da fraternidade. Hoje, mais do que nunca, somos solicitados a ser fraternos", ir ao encontro do outro, do mais fraco e vulnerável para cuidar dele, para nos sentirmos responsáveis por ele por não ter os mesmos recursos que os outros.

Francisco concedeu entrevista à revista semanal italiana “Il mio Papa”, a primeira do gênero no mundo dedicada inteiramente ao Pontífice. Em particular, o resultado da conversa com a a diretora e jornalista Carmen Magallón foi publicado na edição mensal veiculada na Espanha, quando foram abordados temas relacionados à pandemia e à crise vivida atualmente. A revista, fundada um ano depois da eleição de Francisco, hoje está presente também em outros países, como no Brasil (onde é chamada “O meu Papa”), nas Filipinas, na Alemanha e na Polônia.

O desafio das futuras gerações

A pandemia está mudando o mundo e nos colocando em crise, afirma Francisco na entrevista. Entretanto, insiste o Papa, "de uma crise não se sai da mesma forma. Ou saímos melhores ou saímos piores. E a maneira que saímos depende das decisões que tomamos durante a crise”.

O Pontífice, assim, devolve a pergunta à humanidade: qual será o modo de vida que deixaremos para as futuras gerações? Para Francisco, trata-se de deixar de pensar apenas em nós mesmos ou no nosso presente: 

“Devemos nos encarregar do futuro, de preparar a terra para que outros a trabalhem. E essa é a cultura que temos que elaborar na pandemia, segundo esse grande princípio de que não se sai de uma crise da mesma maneira. Saímos piores ou melhores, mas nunca iguais.”

Como enfrentar o luto na pandemia

Questionado sobre como enfrentar o luto pelas vítimas da pandemia, Francisco lembra de todos os pequenos e grandes gestos que tantas pessoas no mundo fizeram para com seus semelhantes e se pergunta: "e como se enfrenta esse luto? Somente tentando ficar próximos. (...) É o momento do silêncio, da proximidade e de fazer o possível para estar junto".

"Os santos da porta ao lado são tantos", acrescenta o Papa na entrevista, referindo-se a todas as pessoas que deram a vida servindo os mais necessitados. Pessoas que "não queriam 'escapar', mas enfrentaram os problemas e procuraram soluções práticas para eles. E Deus compreende essa linguagem e a faz sua”.

O desafio social diante da cultura do descarte

Uma verdade fundamental para Francisco é que o nosso compromisso com a vida não se reduz à saúde, mas continua na preocupação com os descartados, com os expulsos do sistema, com aqueles que não têm trabalho. O Papa afirma, assim, que estamos diante de um "grande desafio social" que coloca diante de nossos olhos como "a cultura do descarte impregnou nossa maneira de nos relacionar".

Por essa razão, não podemos continuar com o mesmo sistema econômico que tem a injustiça entre os seus fundamentos. A pandemia, continua o Papa, nos fez perceber “como nos acostumamos a esse clima do descarte: o descarte dos idosos, o descarte dos pobres, o descarte das crianças, das crianças por nascer" e, em vista disso, Francisco nos convida a recordar que "toda vida vale e merece ser defendida e respeitada".

Para o Papa, como sociedade devemos enfrentar corajosamente a cultura do descarte: uma “cultura que nos ameaça continuamente. Viver descartando o que nos incomoda, o que nos sobra, o que nos impede de ter mais e mais. E, contra essa cultura do descarte, viver a cultura do receber, do acolher, da proximidade, da fraternidade. Hoje, mais do que nunca, somos solicitados a ser fraternos", ir ao encontro do outro, do mais fraco e vulnerável para cuidar dele, para nos sentirmos responsáveis por ele ou por ela porque não têm os mesmos recursos que os outros.

O Papa, em 27 de março, na Praça São Pedro

A jornalista também pergunta ao Papa sobre o que se passou no seu coração no dia 27 de março, na Praça São Pedro. Francisco responde que, num primeiro momento, tinha medo de escorregar ao subir as escadas, porém: 

“Meu coração estava em todo o Povo de Deus que sofria, em uma humanidade que tinha que suportar essa pandemia e, por outro lado, tinha a coragem de caminhar. Subi as escadas rezando, rezei o tempo todo e fui embora rezando. Foi assim que vivi aquele 27 de março.”

Francisco, então, também lembra das Audiências Gerais sem a presença dos fiéis, um momento difícil para o Papa: "foi como estar falando com fantasmas" e "compensei muitas dessas ausências físicas com o telefone e as cartas. Isso me ajudou muito a analisar a situação de como as famílias e comunidades estavam vivendo isso”.

O futuro, a vacina contra a Covid-19 e o bem comum

Para sair da crise, o Papa afirma à jornalista que não existe uma receita, mas que encontraremos o caminho se mudarmos o paradigma econômico, começando “pelas periferias (...), pela dignidade das pessoas". E Francisco acrescenta: "falei das periferias, mas também precisamos incluir a Casa Comum que é o mundo, o cuidado do universo".

Desta forma, Francisco se refere à encíclica recentemente publicada, em 4 de outubro, a "Fratelli tutti", a fraternidade humana como uma das chaves para construir o futuro. E sobre a própria distribuição da vacina contra o coronavírus, o Pontífice reitera: "a vacina não pode ser propriedade do país do laboratório que a encontrou ou de um grupo de países aliados para isso (...) A vacina é patrimônio da humanidade, de toda a humanidade, é universal; porque a saúde dos nossos povos, como nos ensina a pandemia, é patrimônio comum, pertence ao bem comum... e esse deve ser o critério".

Os migrantes são grande parte da humanidade

Quando perguntado sobre o fenômeno da migração, o Papa respondeu com firmeza: "com relação aos migrantes, devemos nos responsabilizar por eles. O migrante deixa seu país porque está em busca de novos horizontes, porque escapa da fome ou da guerra. Basta pensar na Síria...". E o Pontífice acrescenta:"se não cuidarmos dos migrantes, perdemos uma grande parte da humanidade, da cultura que eles representam".

O Papa, então, pede por sinceridade e que reconheçamos a contribuição que pessoas vindas de outros países fizeram durante o confinamento: no lockdown, “eram muitos os migrantes se expondo para trabalhar na terra, mantendo a cidade limpa, continuando os múltiplos serviços. É doloroso ver como eles não são reconhecidos e valorizados e, como se aproveita de um fato distante ou perdido, para desacreditar tantas pessoas que, com o seu trabalho, sustentaram o nosso povo". Francisco vai mais longe na sua argumentação ao nos convidar a entrar nas causas da migração, no caso do Líbano ou da Síria: 

“São famílias inteiras que estão fugindo de uma guerra que não se entende. Nossos países podem permanecer neutros diante desta situação dolorosa?”

Uma Igreja para os pobres

O Papa, então, destaca e valoriza o fato de que "há sacerdotes, religiosos, leigos, religiosas, bispos que se esforçam para conseguir isso”, com belos exemplos “que estão abrindo caminho”. Nesse contexto, Francisco expressa esperança em toda a humanidade: "a humanidade é capaz de reagir, especialmente as periferias, se elas forem organizadas. E a cultura dos povos. Gosto de pensar na alma dos povos, nessa reserva espiritual que lhes permite ir sempre em frente”.

Na recordação do Pontífice vieram também os povos que são perseguidos, que estão sofrendo: "portanto, ir até os povos que sofrem e, enquanto a humanidade inteira não se responsabilizar por isso, não há esperança. Esperança da periferia, dos mais separados”.

As redes sociais e a unidade humana

Ao mudar de abordagem, a jornalista questiona sobre a relação do Papa com as redes sociais, como instrumento de evangelização: "eu tinha alergia”, responde o Pontífice, “portanto, divirta-se um pouquinho com esse fracasso da minha alergia”.

Para Francisco, não há divisão entre o que acontece com os seres humanos e o que acontece no planeta que vivemos. Somos uma única unidade: "o clima está mudando, estamos perdendo oportunidades (...), não podemos brincar com o mar, com o universo. Temos que cuidar dele".

O desejo de visitar Manresa

Finalmente, no contexto dos 500 anos da conversão de Santo Inácio de Loyola, o Papa expressa desejo de ir a Manresa, localidade catalã onde Inácio começou a sua jornada de conversão: "acredito que a conversão de Santo Inácio é também um reencontro com o coração e pode nos convidar a refletir sobre a nossa conversão pessoal, a pedir o dom da conversão para amar mais e servir no estilo de Jesus Cristo", finaliza Francisco.

Fonte: Vatican News