Durante sua última Viagem Apostólica – de 2 a 13 de setembro de 2024 –, o Papa Francisco encontrou-se em três ocasiões distintas com seus confrades jesuítas na Indonésia, Timor-Leste e Singapura. O Santo Padre pediu a libertação da senhora Aung San Suu Kyi, líder deposta birmanesa, promotora dos direitos humanos, vencedora do Prêmio Nobel da Paz, presa desde 2021 após o golpe militar. O padre Antonio Spadaro, presente nos encontros, fez um relato exclusivo para La Civiltà Cattolica, que será publicado na edição 4183 da revista. O texto integral está disponível no site www.laciviltacattolica.it.
Nos três encontros, o Papa Francisco lembrou em várias ocasiões a figura do padre Pedro Arrupe, ex-Prepósito Geral da Companhia de Jesus, falecido em 1991, e seu testamento espiritual. «Padre Arrupe quis que os jesuítas trabalhassem com os refugiados – disse o Pontífice – uma fronteira difícil. E ele fez isso pedindo-lhes, antes de tudo, uma coisa: oração, mais oração», porque «somente na oração encontramos a força e a inspiração para enfrentar a injustiça social». E acrescentou que «é importante a forma como o padre Arrupe falou aos jesuítas latino-americanos sobre o perigo da ideologia misturada com a justiça social». Para o Santo Padre, Arrupe «foi um homem de Deus. Estou fazendo o possível para que ele chegue aos altares».
Segundo Francisco, o padre Arrupe «se dedicou à inculturação da fé e à evangelização da cultura». Dois aspectos que representam «a missão fundamental da Companhia». Para o Santo Padre, «a fé deve ser inculturada. Uma fé que não cria cultura é uma fé proselitista».
Ao falar com os jesuítas sobre a «difícil» situação em Mianmar, o Papa Francisco recordou os Rohingyas, minoria muçulmana discriminada e muitas vezes vítima de perseguição, e afirmou: «Existem bons jovens que lutam pelo seu país. Hoje, em Mianmar, não se pode ficar em silêncio: é preciso fazer algo!». E acrescentou: «Vocês sabem que os rohingyas me tocam profundamente. Falei com a senhora Aung San Suu Kyi, que era primeira-ministra e agora está na prisão». O Pontífice recordou sua viagem a Mianmar e Bangladesh, em dezembro de 2017, e a conversa com Aung San Suu Kyi, e o encontro com os Rohingyas “expulsos”. O Santo Padre relatou ter «pedido a libertação da senhora Aung San Suu Kyi» e recebido o filho dela em Roma: «Ofereci o Vaticano para acolhê-la em nosso território. Neste momento, a senhora é um símbolo. E os símbolos políticos devem ser defendidos». O futuro do país, lembrou o Papa, «deve ser a paz fundada no respeito da dignidade e dos direitos de todos, no respeito a uma ordem democrática que permita a cada um contribuir para o bem comum».
Respondendo a um confrade que pedia conselho sobre as situações em que os cristãos são perseguidos, Francisco disse: «Penso que o caminho do cristão é sempre o do “martírio”, ou seja, do testemunho. É necessário dar testemunho com prudência e coragem: são dois elementos que andam juntos, e cabe a cada um encontrar o seu caminho». E concluiu: «A prudência sempre arrisca quando é corajosa».
Respondendo às perguntas dos jesuítas de Timor-Leste, Francisco falou sobre a justiça social como «parte essencial e integrante do Evangelho». E esclareceu: «A justiça social deve levar em conta as três linguagens humanas: a linguagem da mente, a linguagem do coração e a linguagem das mãos. Ser um intelectual abstrato da realidade não ajuda no trabalho pela justiça social; o coração sem intelecto também não serve; e a linguagem das mãos sem coração e sem intelecto não ajuda em nada». Para o Papa Francisco, o «desejo» de justiça social «deu frutos» ao longo da história: «Quando Santo Inácio nos pede para sermos criativos, ele nos diz: olhem para os lugares, os tempos e as pessoas. As regras, as Constituições são importantes, mas sempre considerando os lugares, os tempos e as pessoas. É um desafio de criatividade e de justiça social. É assim que se deve estabelecer a justiça social, não com teorias socialistas. O Evangelho tem sua própria voz».
O Papa também falou de coragem em referência às mães argentinas da Plaza de Mayo, que há décadas lutam e protestam para obter justiça e verdade sobre os seus filhos e netos desaparecidos durante a ditadura militar, e que inspiraram os Kamisan na Indonésia, um movimento pacífico que todas as quintas-feiras organiza comícios e protestos não violentos para exigir esclarecimentos sobre a violência massiva que abalou Jacarta durante a "tragédia nacional" de Semanggi de 1998, quando dezenas de mulheres foram alvo de multidões furiosas com violência generalizada contra pessoas e propriedades. Um dos jesuítas presentes no encontro em Jacarta acompanha as famílias das vítimas de violações passadas dos direitos humanos e entrega ao Papa uma carta escrita pela Sra. Maria Katarina Sumrsih, mãe de uma das vítimas da tragédia de Semanggi, explicando: "Ela é uma das iniciadoras do Kamisan, inspirado nas Mães da Plaza de Mayo na Argentina. Este grupo apela ao governo para que revele as violações passadas dos direitos humanos e proporcione justiça às vítimas e às suas famílias. Que conselho o senhor pode nos dar?”. O Papa recordou o encontro com a presidente das mães da Plaza de Majo, Hebe de Bonafini, falecida em 2022. “Comoveu-me e ajudou-me muito falar com ela. Transmitiu-me a paixão de dar voz a quem não tem. Esta é a nossa tarefa: dar voz a quem não tem. Lembrem-se disto – insistiu o Papa: esta é a nossa tarefa. A situação da ditadura argentina foi muito difícil e essas mulheres, essas mães, lutaram por justiça”. Então exortou: “Preservem sempre o ideal de justiça!”
Além dos problemas sociais e políticos, Francisco, sempre respondendo às perguntas dos seus convidados, também se concentrou nas questões eclesiais. Começando por aquela – sempre estigmatizada como uma “chaga” – do clericalismo. Em resposta a um jesuíta de Díli, em Timor-Leste, Francisco reiterou que o clericalismo “está por todo lado”. “Por exemplo, no Vaticano, existe uma forte cultura clerical, que está lentamente tentando mudar”, disse ele. “O clericalismo é um dos meios mais sutis que o diabo usa.” Como sempre, o Papa citou De Lubac e o seu livro Meditações sobre a Igreja, no qual fala da “mundanidade espiritual”, afirmando que é “a pior coisa que pode acontecer à Igreja, pior ainda do que o tempo dos Papas concubinos”. “O clericalismo – observou o Pontífice – é a máxima mundanidade dentro do clero. Uma cultura clerical é uma cultura mundana”.
Por fim, referindo-se à Companhia, o Pontífice acrescentou: «Eu sonho com ela unida, corajosa. Prefiro que errem por coragem do que por segurança. Mas alguém pode dizer: “Se estivermos nos lugares de luta, nas fronteiras, sempre haverá o risco de escorregar...”. E eu respondo: “E escorreguem!”. Quem tem sempre medo de errar, não faz nada na vida».
Fonte: Vatican News