Cultura

O Papa: a família é o lugar que acolhe e cuida de todos, o ponto de partida





"Deus escuta as suas orações pela paz", disse Francisco na manhã deste sábado, na Sala Paulo VI, às cerca de setecentas crianças e jovens da Comunidade Papa João XXIII, fundada por dom Oreste Benzi. Em suas "casas de família", quem não tem encontra um pai e uma mãe.

O Santo Padre recebeu, na manhã deste sábado, 14, no Vaticano, as crianças e adolescentes que representam a maior parte da Comunidade Papa João XXIII, fundada pelo sacerdote, conhecido como pe. Oreste Benzi.

Antes de tudo, o Papa agradeceu as crianças e adolescentes que, antes da audiência, haviam lhe enviado suas biografias, com seus respectivos nomes. Francisco apreciou muito este gesto, que também agrada ao Senhor, porque ele conhece cada um pelo próprio nome. De fato, não somos anônimos, tampouco fotocópias. Somos todos originais e assim devemos ser, como dizia o Beato Carlo Acutis, coetâneo de vocês. Deus conhece cada um de nós, porque somos únicos. Claro, quem não tem defeitos? Alguns, infelizmente, carregam pesadas limitações, mas isso não diminui o valor da pessoa: todos somos únicos, filhos e filhas de Deus, irmãos e irmãs de Jesus. E o Papa perguntou: como Deus nos vê? E respondeu:

Com olhar de amor. Deus vê também nossas limitações, mas nos ajuda a suportá-las. Deus olha, sobretudo, nosso coração e a plenitude de cada pessoa. Deus nos vê à imagem de Jesus, seu Filho unigênito, e, com seu amor, nos ajuda a sermos sempre mais semelhantes a Ele. Jesus é o homem perfeito, a plenitude da humanidade e o amor que nos faz crescer para ganharmos o Paraíso”.

Sabemos, acrescentou Francisco, que há sinais que demonstram quando uma pessoa é acolhida com amor e vista com o olhar divino. Por exemplo o sorriso, que citam também em suas biografias. Alguns de vocês disseram que, às vezes, “alguém tem problemas, mas, apesar disso, sorri sempre...". Por quê? Porque esta pessoa se sente amada, acolhida. O sorriso é uma flor que desabrocha no calor do amor. Mas, o Papa recordou outro sinal, que as crianças citam em suas histórias: a experiência das “Casas família”, fundadas pelo pe. Oreste Benzi:

Ele era um sacerdote que olhava as crianças e os jovens com os olhos e o coração de Jesus. Vendo que eram abandonados e se comportavam mal, percebia que lhes faltava o amor paterno e materno, o carinho dos irmãos. Assim, com a força do Espírito Santo e a colaboração de algumas pessoas, chamadas por Deus, Padre Oreste Benzi iniciou esta experiência de hospitalidade que chamou “Casa família”.

Hoje, explicou Francisco, esta experiência se alastrou pela Itália e em outros países, caracterizada pelo acolhimento em casas de pessoas, que abrem suas portas para dar uma família a quem não tem, uma família de verdade, que acolhe todos: menores, deficientes, idosos, italianos ou estrangeiros.

Por fim, o Santo Padre recordou algumas crianças, que não puderam estar presentes, mas se dirigiu, de modo especial, a uma menina, Sara, de 13 anos, que fugiu do Iraque. Aqui, referiu-se àquelas crianças, cuja infância foi roubada, às inocentes que morrem no seio materno.

O Papa Francisco concluiu seu discurso à Comunidade “Papa João XXIII”, agradecendo às crianças e jovens, que, todos os domingos à noite, rezam o Terço on-line pela paz no mundo. Deus ouve as orações, sobretudo, dos pequeninos.

Manoel Tavares

 

 

Francisco: quando Deus chama é sobretudo para servir os mais vulneráveis

O Papa recebeu os membros do Pontifício Colégio Norte-Americano e os convidou a viver o caminho sinodal: as pessoas hoje precisam de sacerdotes capazes de presença e compaixão para ouvi-las e reavivar nelas a esperança de Cristo.

O Papa Francisco recebeu em audiência, neste sábado (14/01), os membros do Pontifício Colégio Norte-Americano.  

No início de seu discurso, o Pontífice recordou a visita que fez ao colégio, situado em Roma, em maio de 2015, e a missa celebrada na Capela.

Queridos amigos, a sua estada aqui em Roma coincide com o caminho sinodal que toda a Igreja está realizando neste momento, um caminho que envolve a escuta do Espírito Santo e uns dos outros, para discernir como ajudar os membros do povo santo de Deus a viver o dom da comunhão e tornar-se discípulos missionários. Este é também o desafio e a tarefa a que vocês são chamados a assumir, caminhando juntos no caminho que conduz à ordenação sacerdotal e ao serviço pastoral.

Cultivar uma relação diária com Jesus

A esse propósito, o Papa partilhou com os membros do Pontifício Colégio Norte-Americano algumas breves reflexões sobre três elementos que considera essenciais para a formação sacerdotal: o diálogo, a comunhão e a missão. Segundo o Papa, "podemos vê-los na passagem do Evangelho de São João que fala sobre André e outro discípulo de João Batista que encontram Jesus, ficam com Ele por um certo tempo e depois conduzem outros, em particular Simão Pedro, ao encontro do Senhor".

O Papa então refletiu sobre o diálogo. Quando Jesus percebeu que os discípulos o seguiam, perguntou o que eles estavam procurando. Quando o questionaram sobre onde ele estava hospedado, Ele os convidou: "Venham e vejam".

Ao longo de suas vidas, sobretudo neste tempo de formação no seminário, o Senhor entra em diálogo pessoal com vocês, perguntando-lhes "o que procuram" e convidando vocês a "vir e ver", a falar com Ele abrindo o seu coração e entregar-se a Ele com confiança na fé e no amor. Trata-se de cultivar uma relação diária com Jesus, alimentada sobretudo pela oração, pela meditação da Palavra de Deus, pela ajuda do acompanhamento espiritual e pela escuta silenciosa diante do Tabernáculo. É nestes momentos de relação familiar com o Senhor que podemos escutar melhor a sua voz e descobrir como servir a Ele e ao seu povo com generosidade e de todo o coração.

O caminho da formação sacerdotal requer comunhão constante

São João também nos diz que os discípulos "permaneceram com" Jesus naquele dia. Eis o segundo elemento essencial: a comunhão. "Permanecendo com Jesus, os discípulos começaram a aprender, com suas palavras, com seus gestos e até com seu olhar, o que realmente importava para ele e o que o Pai o enviara a anunciar. Da mesma forma, o caminho da formação sacerdotal requer comunhão constante: antes de tudo com Deus, mas também com aqueles que estão unidos no corpo de Cristo, a Igreja", disse ainda Francisco.

Durante seus anos em Roma, convido-os a manter os olhos abertos tanto para o mistério da unidade da Igreja, manifestada na legítima diversidade, mas vivida na unidade da fé, quanto no testemunho profético da caridade que a Igreja, especialmente aqui em Roma, expressa com seus atos concretos de partilha e assistência aos necessitados. Espero que estas experiências os ajudem a desenvolver aquele amor fraterno capaz de ver a sagrada grandeza do próximo, de encontrar Deus em cada ser humano, de suportar os aborrecimentos da vida em comum.

Atrair com o testemunho

Por fim, a missão. "Depois de ter ficado com Jesus, André foi procurar seu irmão Simão e levou-o até Ele. Aqui vemos como o testemunho, nascido do diálogo e da comunhão com Cristo, se torna missão: os discípulos, logo que são chamados, vão atrair outros com o seu testemunho."

“Sempre que Jesus chama homens e mulheres, é sempre para enviá-los, especialmente aos mais vulneráveis ​​e marginalizados da sociedade, aos quais somos chamados não só a servir, mas dos quais também podemos aprender muito.”

Segundo Francisco, "as pessoas hoje precisam que escutemos suas perguntas, suas angústias e seus sonhos, para melhor acompanhá-las ao Senhor, que reacende a esperança e renova a vida de todos". "Espero que, realizando as obras de misericórdia espirituais e corporais, através dos vários apostolados educativos e caritativos, vocês sejam sempre sinais de uma Igreja que sabe sair e encontrar-se, partilhando a presença, a compaixão e o amor de Jesus com os nossos irmãos e irmãs", concluiu o Papa.

Mariangela Jaguraba 

 

O Papa aos artistas: que o seu gênio conte de uma maneira nova o fascínio do Evangelho

O Papa assina o prefácio do volume publicado por Marsilio "Uma trama divina. Jesus em contracampo" do padre Antonio Spadaro, diretor de La Civiltà Cattolica. Publicamos a versão completa do texto, publicado neste sábado, como uma antecipação no "Robinson" do jornal La Repubblica.

Para seus contemporâneos, Jesus poderia ter entrado no paradigma de um inadaptado, de uma pessoa que não se adapta, um desadaptado, que não se conforma com o que é óbvio. Mas, bastaria ver as reações provocadas por seus gestos nos Evangelhos. Em Marcos lemos: “Partiram para forçá-lo a voltar, pois comentavam: “Ele perdeu o juízo!” Depois, alguns declararam abertamente, como diz Mateus: ”Por que o Mestre de vocês come com publicanos e pecadores?” Às vezes, Jesus tem reações duras, a ponto de causar indignação, como, por exemplo, derrubar as mesas dos mercantes no Templo. Ele não se adapta; não se conforma.

Seguindo o caminho de Jesus, vemos que ele deixa Nazaré, sua "pátria"; protesta contra aqueles que se sentem incluídos o suficiente, mas excluem os outros; contra aqueles que pensam que veem claramente as coisas, mas são cegos; contra os que se sentem autossuficientes na administração da lei, mas são perversos.

Uma trama divina acompanha-nos à busca de Jesus que caminha, que encontra as pessoas pelo caminho, mas seu semblante muda diante da sua meta: Jerusalém.

Quem é? O que quer? Jesus percorre as cidades ensinando, curando os enfermos, consolando os aflitos. As pessoas ficam maravilhadas e se perguntam quem era, como fizeram seus discípulos. Então ele fixa seus olhos e lhes pergunta: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. Sinto que ele pergunta a mim. Diante da história de Jesus, esta continua sendo a questão fundamental, que vejo ecoar, sobretudo, nas páginas deste livro.

Às vezes, ficamos oprimidos ao ver as imagens de Jesus, que, na realidade, são como santinhos, ao invés de retratos eficazes. A nossa tendência é refrear Jesus, torná-lo mais amável, de modo a tornar a sua mensagem inutilmente amena. Ele proporciona paz, consola, traz uma "luz tênue", como escreveu São João Henry Newman, mas não faz adormecer com cantigas e, sobretudo, não anestesia. Uma saudável inquietação insatisfeita, além de um estupor pela novidade, abre o caminho para a ousadia. Logo, não precisamos de narrações edificantes, sobretudo, nos tempos difíceis em que vivemos. Este livro as exclui, colocando em evidência, muitas vezes, o claro-escuro, a rigidez das narrações evangélicas. Jesus veio trazer fogo à terra. Ele irradia luz e não teme as trevas. Por outro lado, quem cresce em um mundo de cinzas, não mantém, facilmente, o fogo dos grandes desejos.

Não devemos perder o fogo do encontro com Jesus. Olhemos para o Mestre, sigamo-lo em seu caminho sem perdê-lo de vista. Todos nós podemos fazer isso, embora nem sempre consigamos compreender Deus ou prever seu caminho. É tão bom ser compreendidos por Ele e deixar-nos guiar.

Aprendamos a tirar o pó, que se acumulou nas páginas do Evangelho; descubramos o gosto intenso por ele. Eis o caminho que somos chamados a percorrer: ouvir o tom de voz de quem pronunciou as Bem-aventuranças, repartiu os pães para a multidão, sarou os enfermos, perdoou os pecadores, sentou-se à mesa com os publicanos.

A história de Jesus une-se à dos homens e mulheres, desperta e fortalece as energias ocultas, a paixão entusiasta pela verdade e a justiça, as centelhas de plenitude, que o amor suscita em nosso caminho; mas, também, a capacidade de enfrentar as falências e sofrimentos, para exorcizar os demônios da amargura e do ressentimento.

trama pertence à história. Não há história sem tramas. Deus entrou na trama das vicissitudes humanas com uma história, que hoje pode ser narrada. A trama é um entrelaçamento de fios, onde Jesus entrou. Um fio não é igual ao outro, mas, às vezes, os fios se atam. Na trama dos acontecimentos humanos, podemos reconhece-los "em ação", como escrevia Santo Inácio: “Jesus comove-se, aproxima-se, toca com mão o sofrimento e a morte e os transforma em vida”. A leitura da história de Jesus não nos distancia da trama da nossa existência. Pelo contrário, convida-nos a encarar a nossa história, a voltar a encontrá-la sem fugir.

Devemos "ver" este Jesus, sentir o seu toque na nossa pele, senão o Filho de Deus, o Mestre, se tornará algo abstrato, uma ideia, utopia, ideologia. Nele há um intercâmbio de olhares, mas não só, são envolvidos todos os sentidos. Jesus foi ungido pelo perfume de uma mulher, comeu e repartiu pães e peixes, tocou e sarou, ouviu e respondeu aos seus interlocutores.

Abrir os Evangelhos é como ver, através de uma câmera, Jesus em ação. O olhar, com o qual “uma trama divina” nos ajuda a lê-los, se parece como o do cinema. Santo Inácio de Loyola, nos seus Exercícios Espirituais, convida-nos a contemplar os Evangelhos com os olhos da imaginação, com os olhos, não com a abstração mental. Assim sendo, a história de Jesus entra na nossa. À luz da nossa vida, podemos vê-la, mas vemos também os rostos, os acontecimentos, os personagens... Podemos imaginar que até nós entramos na história de Jesus, vendo sua pessoa, os lugares, seus movimentos e até ouvir as palavras que ele pronuncia. Deste modo, o Evangelho nos toca profundamente.

Os gestos de Jesus são inclusivos: aproxima os mais pobres, os oprimidos, os cegos, tornando-os partícipes da sua nova visão das coisas. Seu olhar não é assistencialista. Ele cura os cegos, não para que apreciem um espetáculo midiático neste mundo, mas para que possam ver a ação de Deus na história. O Senhor não vem libertar os oprimidos, só para que se sintam bem, mas para se que coloquem em ação.

Jesus confia no melhor espírito humano. Encontrá-lo significa recuperar as energias, as força, a coragem. Diante da realidade, o Mestre não se deixa levar por reclamações, não faz um julgamento paralisante. Pelo contrário, convida-nos a um compromisso apaixonado.

A vulnerabilidade das pessoas, pelas quais o Senhor se compadece, não o leva a fazer uma avaliação prudente sobre as nossas limitações, como os Apóstolos lhe sugerem, mas exorta à superabundância transbordante do Evangelho, como aconteceu com a “Multiplicação dos pães”.

Neste sentido, uma trama divina coloca claramente em evidência a capacidade de julgamento diferente de Jesus e de seus discípulos. Não devemos temer se, muitas vezes, vemos Jesus incompreendido até pelos seus, tendo que agir sozinho, mas, questionar a nossa capacidade de julgar e entender o Evangelho.

Enfim, como podemos falar de Jesus? Qual a linguagem que devemos usar? Como apresentar este "personagem", que mudou a história do mundo? Eis alguns desafios deste livro. Certamente, não devemos apresentá-lo com uma linguagem costumeira. A linguagem da verdadeira tradição é viva, vital, capaz de um futuro e poesia, porque a linguagem costumeira é obsoleta, enfadonha, cerimoniosa, óbvia. A Igreja deve fazer atenção para não cair na armadilha de uma linguagem banal, de frases repetidas de modo mecânico e cansativo.

O Evangelho deve ser fonte de genialidade e surpresa, capaz de abalar nosso interior. A pior coisa é transformar o poder da linguagem evangélica em algodão-doce: amenizar o impacto das palavras, suavizar certos aspectos das frases, domesticar o sentido do discurso. Quanto são importantes as palavras! Artistas e escritores, pela natureza própria da sua inspiração, conseguem preservar a força do discurso evangélico.

Hoje, no mundo, ressoa um "eco atômico", segundo a expressão do poeta jesuíta, Gerard Manley Hopkins. Faço um apelo: “Neste tempo de crise da ordem mundial, de guerra e grandes polarizações, paradigmas rígidos, graves desafios climáticos e econômicos, devemos sentir a necessidade da genialidade de uma nova linguagem, histórias e imagens poderosas, escritores, poetas e artistas capazes de gritar ao mundo a mensagem do Evangelho e nos mostrar Jesus.

 

 

Francisco: África, um continente a ser valorizado, não saqueado

O Santo Padre recebeu em audiência, no dia 15 de dezembro de 2022, no Vaticano, os membros da revista “Mundo Negro”, dos Missionários Combonianos da Espanha, aos quais concedeu uma entrevista de cerca de 30 minutos. Estavam presentes, entre outros, o diretor da revista, Padre Jaume Calvera, e o Cardeal Miguel Ángel Ayuso Guixot, Prefeito do Dicastério para o Diálogo Inter-religioso. Eis alguns trechos da entrevista, publicada on-line nesta sexta-feira, 13.

Santo Padre, quando o senhor se tornou Jesuíta, queria, entre outras coisas, ser missionário ao Japão?

“Sim, é verdade”.

O que o então Padre Bergoglio fazia na época?

“Acho que sempre me dediquei às periferias. Eu via mais seu aspecto interior, não porque apenas me interessavam intelectualmente. Queria ir para além das fronteiras”.

O senhor disse que “a África nunca deixa de surpreender”. Quanta desta surpresa pode ser atribuída aos missionários que o senhor encontrou lá?

“O que mais me surpreendeu dos missionários foi sua capacidade de se inserir nos diversos lugares, respeitar as culturas e ajudá-las a se desenvolver. Eles não tiram as pessoas das suas terras, pelo contrário. Quando vejo os missionários, apesar de alguém sempre poder errar, percebo que a Missão Católica não faz proselitismo, mas anuncia o Evangelho, segundo a cultura local. Catolicismo é isso: respeitar as culturas. Não há uma cultura católica como tal, mas um pensamento católico. Porém, cada uma das culturas está enraizada no católico, devido à ação do Espírito Santo, na manhã de Pentecostes. Isso está bem claro. O católico não possui uniformidade, mas harmonia, a harmonia nas diferenças. Esta harmonia é dada pelo Espírito Santo. Um missionário vai, respeita o que encontra em cada lugar e ajuda a criar harmonia. Todavia, não faz proselitismo ideológico ou religioso, muito menos colonialismo. No entanto, houve alguns desvios, em certos continentes, por exemplo, o grave problema das escolas no Canadá: estive ali e falei sobre isso, devido à independência, que, na época, não estava muito clara. Mas, o missionário tem que respeitar a cultura do povo local, conviver com ela e levar adiante seu trabalho”.

O Concílio Vaticano II, que comemora seu 60º aniversário, deu um extraordinário impulso missionário. Desde então, a Missão mudou? A Igreja e os povos precisam de outra Missão?

“Sim, graças a Deus! Os historiadores dizem que, para que um Concílio tenha um resultado total, precisam 100 anos. Então, já percorremos um pouco mais da metade do caminho. Tantas coisas mudaram na Igreja, muitas coisas para melhor... Há dois sinais interessantes: as primeiras efervescências inconvenientes do Concílio já desapareceram, como as litúrgicas, quase inexistentes; surge também certa resistência anticonciliar, que antes não havia, típica de um processo de amadurecimento. Mas, tantas coisas mudaram... Sobre a ação missionária, o respeito pelas culturas e a enculturação do Evangelho são valores que provêm como consequência indireta do Concílio. A fé se insere na enculturação e o Evangelho assume a cultura do povo local: uma evangelização da cultura”.

A Missão deve ser necessariamente feita através do diálogo?

“É evidente. Hoje há uma consciência muito maior do diálogo, e quem não sabe dialogar não amadurece, não cresce e não poderá deixar nada para a sociedade. O diálogo é fundamental”.

Quando o senhor visitou o Marrocos em 2019, disse: “Jesus não nos escolheu e nos enviou para sermos mais numerosos, mas para uma missão”. Estamos preocupados com o número de católicos?

“As estatísticas são úteis, mas não devemos confiar muito nelas. Mas, me pergunto: em quem devo depositar a minha esperança? E lhes pergunto: em quem vocês depositam suas esperanças? Nas suas organizações, na capacidade sociológica de mobilização ou na força do Evangelho?”

De 31 de janeiro a 5 de fevereiro o senhor visitará a República Democrática do Congo e o Sudão do Sul...

“Sim, em julho a viagem foi suspensa por causa do meu problema no joelho... No Sudão do Sul vou junto, em paridade, com o Arcebispo de Cantuária e o moderador da Igreja da Escócia, porque estamos trabalhando muito bem juntos. A República Democrática do Congo é como um baluarte de inspiração. A comunidade congolesa aqui de Roma é dirigida por uma religiosa, Irmã Rita, docente universitária, mas que dirige tudo como um bispo... Celebrei uma Missa em rito congolês para esta comunidade da qual estou muito próximo. Estou muito ansioso por esta viagem. O Sudão do Sul é uma comunidade sofredora. O Congo está sofrendo, neste momento de guerrilha, por isso, não vou a Goma, não posso ir, por causa do avanço da guerrilha. Não vou, não por medo de acontecer alguma coisa comigo. Mas, com aquele clima e diante dos acontecimentos é perigoso que joguem uma bomba no estádio e matam as pessoas. Devemos ter cuidado com as pessoas”.

O senhor fez uma menção sobre a questão das periferias humanas e existenciais, que o leva ao Continente africano. Estas duas periferias são inseparáveis?

”A África é original, mas devemos denunciar uma coisa: a inconsciência coletiva, que diz que a África deve ser explorada. Assim nos diz a história, com a independência intermediária: produz uma independência econômica, a partir da base, mas tem em mente o subsolo para explorar e a exploração de outros países, que se apropriam de seus recursos”.

Quais são as riquezas do Continente africano que não conhecemos?

“Vemos apenas suas riquezas materiais e é por isso que, historicamente, elas sempre foram alvo de exploração. Notamos, hoje, que muitas potências mundiais vão para lá só para saquear, sem perceber a inteligência, a grandeza, a arte daquele povo”.

Ao insistir sobre a guerra na Ucrânia, o senhor sempre reitera que não devemos esquecer outros conflitos ocultos no mundo, também os da África…

“É óbvio. Percebemos que esta é uma guerra mundial porque está próxima de nós... Um dos problemas mais sérios é a produção de armas. Certa vez, alguém me disse: se pararmos de fabricar armas, por um ano, a fome no mundo acabaria. Esta é uma indústria para matar...”.

Quando falamos da exploração no Continente africano, referimo-nos aos recursos naturais e pessoais. O que acontece quando se erguem muros para deter ou impedir isso?

“Quando colocam arame farpado para impedir a sua fuga, é um crime. Trata-se daqueles países que têm um índice demográfico baixo, que precisam de mão de obra, cujas cidades são vazias e não sabem administrar a integração dos migrantes. Os migrantes devem ser acolhidos, acompanhados, promovidos e integrados. Se não estiverem integrados, é um péssimo sinal… No entanto, há uma grande injustiça europeia: Grécia, Chipre, Itália, Espanha e até Malta são países mais expostos para o acolhimento da migração. A Itália, onde apesar da atual política migratória do governo ser restritiva, no bom sentido, sempre abriu as portas para salvar pessoas, que a Europa rejeita acolher. Esses países têm que arcar com tudo e se deparam com o dilema de mandar os migrantes de volta, onde poderão correr o risco de ser maltratados ou até morrer... É um problema sério! A União Europeia não acompanha estes acontecimentos!”.

Fonte: Vatican News