Santidade, Nápoles é uma metrópole que tem vista para o Mediterrâneo e, precisamente por esta razão, também tem vista para o seu pontificado. De fato, é a bacia do "mare nostrum", lugar de trânsito das migrações e, portanto, das grandes tragédias deste nosso tempo, a área privilegiada de suas intervenções, agora focalizadas no trágico retorno da guerra ao coração da Europa e em uma pandemia que, além de causar luto, parece ter atingido e abalado a humanidade a partir de dentro.
Já estive em Nápoles. De alguma forma me faz lembrar de Buenos Aires. Porque isso me faz lembrar o Sul. E eu sou de fato do Sul. Viajei pelo Mediterrâneo, o mare nostrum, e vi com meus próprios olhos os olhos dos migrantes. Vi o medo e a esperança, as lágrimas e os sorrisos cheios de expectativas traídos com demasiada frequência. Nunca posso esquecer as palavras proferidas em Lesbos em 2016 por meu amigo e irmão, o Patriarca Ecumênico Bartolomeu: "Aquele que os teme não os olhou nos olhos. Aquele que tem medo de vocês que não viu seus rostos. Aquele que tem medo de vocês não vê seus filhos". Quando penso no Mediterrâneo, em Lesbos, Chipre, Malta, Lampedusa, penso que as terras que este mar banha são precisamente aquelas onde Deus se fez homem. Jesus nasceu aqui, este que foi seu berço está se transformando em um cemitério sem lápides, um mare mortuum. E por isso também penso que não devemos esquecer que o futuro de todos só será sereno se for reconciliado com os mais fracos. Pois quando os pobres são rejeitados, rejeita-se Deus que está neles, e rejeita-se a paz. É por isso que sempre advirto contra aqueles que gostariam de tecem o mundo do medo, desconfiança, de muros e de guerras; em vez de confiança, de pontes e de paz. É fácil assustar o público ao instigar o medo do outro. É mais difícil falar de encontro com o outro, denunciar a exploração dos pobres, as guerras que muitas vezes são financiadas em grande parte, acordos econômicos feitos na pele das pessoas e manobras encobertas para traficar armas e proliferar o comércio das mesmas. Mas é isto que somos chamados a dizer como cristãos: raciocinar com um esquema de paz e não de guerra, de amor e não de ódio; mesmo nos momentos que nos parecem mais sombrios.
Mas como sairemos da guerra? Como será o mundo depois da guerra?
Hoje nos medimos com a guerra na Ucrânia. E também com tantas outras guerras.
São João Paulo II em sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2002, no rescaldo do ataque às Torres Gêmeas, escreveu que a ordem rompida não pode ser totalmente restaurada a menos que a justiça e o perdão sejam conjugados. Os pilares da verdadeira paz são a justiça e o perdão, que é uma forma particular de amor. Este é o caminho. Há um tempo para tudo. Antes do perdão vem a condenação do mal. É essencial, porém, não cultivar a guerra, mas preparar a paz, semear a paz. Não se deve resignar-se à ideia de que para vencer o mal é preciso usar suas próprias armas. Como reiterei no encontro no Cazaquistão com os líderes religiosos, somente o diálogo é o caminho necessário e sem retorno. E o diálogo é necessário com todos.
Diante da vastidão dos problemas, perguntamo-nos se e que papel Nápoles, seu território e, por extensão, todo o sul da Itália, pode desempenhar em um renascimento muitas vezes previsto mas nunca realizado, ou pelo menos nunca iniciado em sentido concreto. O tempo da antiga "Questão Sul" também parece ter expirado, embora não se canse de anunciar, de tempos em tempos, alguma mudança iminente de rumo.
Muitas vezes aconteceu, em nossa navegação como humanidade, que em vez de uma mudança de rumo necessária, nos contentamos, como escreveu Kierkegaard, com uma variação irrelevante e insignificante do cardápio do dia, aquele que o cozinheiro serve no navio, enquanto o curso permaneceu o mesmo. Mas somos nós que traçamos o rumo. Passo a passo. Com nossos pensamentos e com nossas ações. Carlo Levi, em seu livro "Cristo parou em Eboli" escreveu que não pode ser o Estado que resolve a questão sulista, pela razão de que o que chamamos de problema sulista não é nada mais que o problema do Estado. Eu acrescentaria a isso que o Estado, os Estados, somos nós, com nossa capacidade (ou incapacidade) de construir juntos instituições, sistemas normativos e comportamentos (individuais e coletivos) que têm o bem comum como seu único fim. Aqui está a raiz de nossos problemas: na falta de costume de pensar no bem comum. Mas se olharmos para os tempos em que vivemos, estamos diante da possibilidade de uma mudança de rumo. Quando penso em Nápoles, em sua história, nas dificuldades por que passou, penso também na extraordinária capacidade criativa dos napolitanos. E penso em como pode ser usado para tirar o bem do mal, a alegria de viver diante das dificuldades, a esperança mesmo onde parece haver apenas descarte e exclusão. A este papel de exemplo, penso que Nápoles pode se sentir chamada. O tempo nunca expirou, há sempre tempo para mudar de rumo. E o tempo também é isso. E isso nos desafia a todos. Como disse na hora mais sombria da pandemia, no extraordinário momento de oração na Praça de São Pedro, pensando nas raízes do mal de nosso tempo: gananciosos por lucro nos deixamos absorver pelas coisas e atordoados pela pressa. Não despertamos para guerras e injustiças planetárias, não escutamos o grito dos pobres e de nosso planeta gravemente doente. Pensamos que continuaríamos sempre saudáveis em um mundo doente. Este é um tempo de provação, um tempo de escolha. O tempo para escolher o que conta e o que passa, para separar o que é necessário do que não é. É o momento de reiniciar o curso. Nápoles é, de certa forma, um paradigma da questão do Sul na Itália. Mas a questão do Sul é universal. Trata-se da desigualdade. A questão do sul é uma questão universal, diz respeito ao futuro do mundo inteiro. É por isso que com Laudato sì pedi para se pensar em um desenvolvimento sustentável e integral, novas formas de entender a economia e o progresso, e enfatizei as grandes responsabilidades da política, da economia, de cada um de nós. É por isso que pedi e continuo a pedir repetidamente, em nome de Deus, aos grupos financeiros e aos organismos internacionais de crédito que permitam aos países pobres garantir as necessidades básicas de seu povo e perdoar essas dívidas tantas vezes contraídas contra os interesses desses mesmos povos. É por isso que continuo pedindo que as grandes empresas deixem de destruir as florestas, de poluir rios e mares e de intoxicar os povos e os alimentos. A enchente dramática na região das Marcas, que causou luto e ruína em todo o país, é mais uma confirmação de que o desafio climático merece a mesma atenção que a Covid e a guerra. Precisamos de uma mudança completa de direção e deixar de impor, a nível geral, estruturas monopolistas que inflacionam os preços e acabam detendo o pão dos famintos. É por isso que continuo a pedir aos fabricantes e traficantes de armas que cessem totalmente suas atividades, que fomentam a violência e a guerra, colocando milhões de vidas em jogo. Assim como pedi aos gigantes da tecnologia que parassem de explorar a fragilidade humana para obter lucro, e que não favorecessem o aliciamento de menores na web, os discursos de ódio, as fake news, as teorias conspiratórias e a manipulação política, e ao invés disso liberalizassem o acesso aos conteúdos educacionais. Aos governos em geral, aos políticos de todos os partidos, tenho pedido e continuo a pedir-lhes que trabalhem pelo bem comum, e a coragem de olhar seu povo nos olhos, para saber que o bem de um povo é muito mais do que um consenso entre as partes; que eles não apenas escutam as elites econômicas com tanta frequência porta-vozes de ideologias superficiais que desviam as verdadeiras questões da humanidade. A criatividade é necessária. Uma criatividade voltada para o bem. Para um novo modelo econômico. Os napolitanos têm muita criatividade. O importante é direcioná-la para o bem. O importante é o rumo.
Francesco de Core e Angelo Scelzo
Fonte: Vatican News