O ano de 2022 começou com uma notícia aparentemente preocupante: no dia 3 de janeiro, Israel detectou o primeiro caso de um paciente com covid-19 e gripe ao mesmo tempo.
Nas redes sociais e na imprensa, o quadro logo foi apelidado de "flurona" — junção dos termos flu, ou gripe, em inglês, e rona, em referência a "corona", ou coronavírus.
Logo após a descoberta, as agências de saúde de vários outros países também anunciaram o diagnóstico de casos parecidos. No Brasil, os dois primeiros pacientes foram identificados na terça-feira (4/1), no Rio de Janeiro.
Embora o assunto chame a atenção, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que infecções por mais de um vírus são comuns na prática clínica e, por ora, não existem dados suficientes para afirmar que ter gripe e covid ao mesmo tempo leve a um quadro de maior gravidade ou com mais riscos à saúde.
"Para começo de conversa, esse nome flurona é péssimo e nem deveria ser usado. Não se trata de uma doença nova ou de um vírus diferente", critica o infectologista Alberto Chebabo, da Dasa.
"Pelo que se sabe até agora, estamos falando de uma detecção conjunta de dois vírus [o influenza, causador da gripe e o coronavírus, causador da covid] e não há evidências de que isso leve a um aumento de casos graves", continua o médico, que também é diretor do Hospital Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
"E vale ainda destacar que essa detecção conjunta não é nenhuma novidade. O mesmo acontece com outros vírus", completa.
A infectologista Carolina Santos Lázari, do Grupo Fleury, explica que há uma diferença importante entre detectar dois vírus num paciente e esses patógenos efetivamente causarem infecções simultâneas.
"Em doenças infecciosas que afetam o sistema respiratório, é comum que o paciente continue excretando o material genético do vírus algum tempo após a recuperação", diz.
A confusão pode acontecer porque parte desse material genético viral é detectado pelos exames de diagnóstico, como o RT-PCR.
Ou seja: alguns indivíduos podem estar com uma infecção ativa pelo coronavírus no momento do exame e ainda excretar o material genético do influenza, resquício de uma gripe que já foi superada.
Essa situação é um exemplo clássico de codetecção. O teste dá positivo para dois vírus no organismo, mas apenas um deles está causando problema de verdade.
Mas também existe a coinfecção, em que dois patógenos diferentes estão agindo de forma simultânea e engatilham uma resposta imunológica e inflamatória no paciente.
"E frequentemente ocorre até uma interação entre esses dois agentes infecciosos, em que a presença de um pode mudar o curso da doença de outro", informa Lázari, que também atua no Hospital das Clínicas de São Paulo.
Como dito no início da reportagem, casos de coinfecção em geral não são uma coisa inédita na medicina. "É possível ter, por exemplo, hepatite B e C juntas. Ou HIV e tuberculose", cita a infectologista.
Os especialistas também lembram que, no caso específico de infecções respiratórias, é comum detectar a presença de mais de um patógeno em ação ao mesmo tempo, especialmente em crianças com idade escolar que são acometidas pelo resfriado, quadro que pode ser provocado por vírus sincicial respiratório, rinovírus, bocavírus, parainfluenza…
"Já vimos situações em que três vírus foram detectados. Mas sempre fica a dúvida se todos eles estão causando a infecção ou se apenas um está agindo e os outros estão só presentes ali", observa Chebabo.
Nesses casos mais recentes de "flurona", Lázari entende que tanto a codetecção quanto a coinfecção são possíveis.
"Em 2020 e em boa parte de 2021, o influenza tinha praticamente desaparecido. A partir de dezembro, houve uma retomada desse vírus", destaca.
"Os quadros de coinfecção, portanto, se tornam mais frequentes em períodos de surtos, como esse que temos agora", destaca o médico patologista Helio Magarinos, diretor do laboratório Richet, no Rio de Janeiro.
"A pandemia de covid-19 não acabou e estamos em meio a uma epidemia de influenza em várias cidades brasileiras", complementa.
Com poucos dias desde que os primeiros casos da "flurona" foram diagnosticados, ainda é cedo para ter certeza sobre o impacto da infecção em dose dupla na saúde dos pacientes.
Também não se sabe se o quadro está relacionado a sintomas diferentes ou a um maior risco de hospitalização e morte.
"Será que pegar os dois vírus pode ser mais perigoso para algum grupo específico, como idosos, crianças ou indivíduos com a imunidade comprometida? Ainda não temos essa resposta", diz Lázari.
"É claro que estamos falando de influenza e coronavírus, dois vírus que já são mais patogênicos. O fato de eles estarem juntos gera um certo receio", continua a médica.
"Mas isso não é suficiente para a gente concluir que esse quadro levaria a um pior desfecho", conclui.
Chebabo concorda. "Até agora, não temos nenhum dado que demonstre um aumento na gravidade."
Se, por um lado, existem várias perguntas sem resposta sobre o real significado da infecção simultânea por coronavírus e influenza, por outro, há muita certeza a respeito dos métodos mais efetivos para prevenir essas doenças, independentemente de elas aparecerem juntas ou separadas.
Manter o distanciamento físico, usar máscaras de boa qualidade, lavar as mãos frequentemente e preferir encontros ao ar livre ou em locais com boa circulação de ar são atitudes que diminuem o risco de pegar covid e gripe, indicam os especialistas.
Não dá pra se esquecer também das vacinas. No caso do coronavírus, é primordial complementar o esquema preconizado com duas ou três doses.
Já no caso da gripe, algumas cidades estão oferecendo atualmente o imunizante para toda a população (ou alguns grupos específicos) nos postos de saúde.
"Se você não se vacinou contra a gripe em 2021 e há disponibilidade na região onde você mora, sempre vale a pena tomar a dose", recomenda Lázari.
"O subtipo do vírus influenza que está em circulação no Brasil agora é H3N2 Darwin, enquanto a vacina oferecida no ano passado confere uma proteção contra o H3N2 Hong Kong", continua.
"A vacina, portanto, pode surtir um efeito menor. Mesmo assim, ter uma proteção parcial ainda é melhor do que não ter proteção nenhuma", raciocina a infectologista.
Se você apresenta sinais típicos de uma infecção respiratória, como tosse, coriza, febre, dor, diarreia e perda de olfato ou paladar, é importante ficar em isolamento (para não transmitir os vírus adiante) e buscar o diagnóstico.
Magarinos conta que os laboratórios possuem a tecnologia para fazer a detecção dos casos simultâneos de covid e gripe.
"É possível fazer essa avaliação tanto pelo RT-PCR quanto pelos testes de antígeno", diz.
"A indicação de um ou de outro vai depender da disponibilidade, da avaliação do profissional de saúde e de quantos dias se passaram desde o início dos sintomas", lista o médico.
Entenda a diferença entre esses métodos e quando eles devem ser feitos nessa reportagem publicada pela BBC News Brasil.
Em algumas situações, é possível fazer o chamado painel viral, em que um único exame avalia a presença de influenza, coronavírus e vários outros patógenos.
A ampliação na oferta desses exames mais amplos, inclusive, tende a aumentar a detecção de "flurona" e de outros "encontros" virais num mesmo indivíduo — por estarmos num momento de alta circulação de vírus respiratórios, quanto mais eles forem procurados, mais casos serão identificados.
Outra possibilidade é testar separadamente para essas duas doenças e comparar os laudos. Se um resultado der positivo para coronavírus e o outro aparecer negativo para influenza, por exemplo, o indivíduo pegou covid, mas está livre da gripe.
Agora, se uma ou essas duas doenças forem diagnosticadas de fato, a recomendação é seguir em isolamento pelos dez dias seguintes, avisar os contatos próximos, monitorar os sintomas e ir ao hospital caso os incômodos piorem ou demorem a passar.
"No caso específico do influenza, há a possibilidade de fazer um tratamento com o antiviral oseltamivir, desde que exista uma recomendação e uma prescrição médica para isso", aponta Lázari.
Já contra o coronavírus, não existem antivirais aprovados e disponíveis no Brasil.
Hospitais e UPAs (unidades de pronto atendimento) de todo país estão enfrentando superlotação e atendendo acima da capacidade máxima para dar conta de assistir os pacientes com síndromes gripais que buscam as unidades.
Em meio ao apagão de dados de internações no país, a alta de casos pegou o SUS (Sistema Único de Saúde) desprevenido após a desabilitação de leitos e de unidades de atendimento por causa da redução dos casos de covid após a vacinação. Agora, em muitos municípios, leitos e locais de atendimento estão sendo abertos novamente para dar conta da demanda.
O UOL pesquisou e viu que em todos os estados há relatos de aumento no número de pacientes. "Estamos tendo muitos idosos internados por gripe, com pneumonia e complicando. Aqui está tudo cheio, cheio mesmo", conta a infectologista Loures Borzacov, que atua em Porto Velho (RO).
Segundo profissionais ouvidos pela reportagem, o cenário gerado pelo surto da Influenza H3N2 (tipo que não está incluído na vacina contra a gripe) e a circulação da variante ômicron está causando uma demanda similar à dos picos de covid, com a diferença de serem casos mais leves.
"Estamos com os seguintes problemas: aumento da procura por atendimento, aumento do número de hospitalizações e perda da força de trabalho em função de doenças respiratórias", sintetiza o médico e professor de pneumologia da UnB (Universidade de Brasília) Ricardo Martins.
E dentro de um quadro em que muito mais pessoas são contaminadas, o esperado é que se tenha uma incidência considerável de casos graves"
Em Pernambuco, onde 8 pessoas já morreram de influenza nos primeiros dias deste ano, o estado abriu 378 leitos para casos de SRAG (síndrome respiratória aguda grave) em apenas 15 dias, sendo 150 de UTI —e que já estão praticamente ocupados.
"Nós tivemos uma aceleração que, em 15 dias, dobrou o registro de casos de SRAG e triplicou as solicitações de leitos. A situação provocada pela influenza na última semana já é pior que a primeira onda da covid-19 em 2020", afirma o secretário.
Na quinta-feira, cerca de 400 pacientes com indicação de UTI aguardavam uma transferência para vaga. "Creio que o número de atendimentos seja até maior [que no pico da covid]. A questão é que temos um número menor de pacientes graves. Por isso a sobrecarga no plantão é ligeiramente menor", afirma a médica Gabrielle Souza, que atua em uma policlínica municipal do Recife.
No Ceará, a alta levou o estado não só a ampliar leitos como voltar a reduzir a capacidade de eventos públicos —que agora não podem exceder 250 pessoas em locais fechados e 500 em lugares abertos.
Já em Salvador, a prefeitura abriu 30 novos leitos no fim do ano, e a ocupação deles ultrapassou 60% e é a maior desde julho (alcançou 62% no dia 4). Na Bahia já foram 1.400 casos, 35 óbitos por Influenza. Já para a covid-19 a prefeitura ampliou de 48 para 50 postos de saúde com oferta de testes.
Em Teresina, a semana encerrada no sábado passado teve um aumento de 76% nos atendimentos de casos de síndromes gripais. A demanda por testes RT-PCR para covid-19 subiu 56%.
Em Alagoas, o governo do estado anunciou que as UPAs de Maceió estão superlotadas e decidiu criar quatro centros de atendimentos exclusivos para síndromes gripais anexadas às unidades.
Em São Luís (MA), desde quarta-feira (5) mais dois Centros de Atendimento às Síndromes Gripais Leves entraram em funcionamento. Em Aracaju (SE), desde o dia 1º de dezembro, cerca de 12% dos atendimentos diagnosticados como sintomas gripais ou de doenças virais e respiratórias foram de pessoas não residentes na capital.
"Esse índice pode parecer pequeno, mas, na prática, quando estamos atendendo cerca de 900 pacientes com síndromes gripais diariamente, representa o aumento do tempo de espera e a superlotação das unidades", detalha a secretária da Saúde de Aracaju, Waneska Barboza.
Em Natal (RN), foi aberto o Centro de Enfrentamento às Síndromes Gripais da Prefeitura do Natal foi aberto no último dia 29 —e só no primeiro dia atendeu 439 pessoas.
Em São Paulo, o estado teve um aumento de 30% em novas internações por covid-19 nos hospitais públicos e privados na última semana —subiu de 425 para 552. A alta foi impulsionada pela variante ômicron.
A situação é grave em todo o estado. Caraguatatuba, por exemplo, bateu recorde no número de atendimentos das três UPAs: 2.279 pessoas na última terça-feira (3). Nos quatro primeiros dias de 2022, as UPAs realizaram uma média de 2.066 atendimentos ao dia —três vezes maior do que há um mês. "Mais da metade representa atendimento a pacientes com síndrome gripal", diz a prefeitura.
No Rio, a Secretaria Municipal de Saúde aponta que a capital já registrou, nos seis primeiros dias do ano, 34% a mais de casos de covid-19 do que em todo o mês de dezembro (quando foram 5.407 confirmações da doença). Para janeiro, esse número já chegou a 7.265 notificações em apenas seis dias.
Na quarta-feira, a Prefeitura de Belo Horizonte abriu leitos de enfermaria covid-19 no SUS, totalizando agora 240. Mesmo assim, a taxa de ocupação deles já está em 78,4%. Durante a semana, a taxa de ocupação chegou a 100% para as enfermarias.
No Paraná, o estado registra uma alta de 581% na média móvel de covid-19. No dia 4, essa média chegou a 1.057, quase sete vezes mais que em comparação a 14 dias antes.
Por causa da alta, a Prefeitura de Curitiba reestruturou temporariamente seus serviços, e 12 unidades de saúde foram convertidas em pontos de atendimento de casos suspeitos e com sintomas leves de gripe e covid-19.
Em Macapá (AP), o município anunciou uma explosão de casos de covid-19 — de 2.027 em novembro de 2021 para 14.157 em dezembro, alta de 598%.
No Amazonas, a média diária de casos de covid-19 passou de 100 para 275 por dia entre quarta-feira para ontem, e o governo decidiu suspende grandes eventos e restringir o número de pessoas ao máximo de 200 em cada um deles.
Goiânia anunciou esta semana ampliação de testes com a criação de dois novos pontos para atender 2.000 pessoas com exames de antígeno ao dia.
Em Várzea Grande (MT), foram 26.657 pessoas atendidas em 14 dias com sintomas de SRAG. "Estes números demonstram um considerável aumento nos casos, e, como Várzea Grande atende pelo SUS, entre 52% a 59% dos atendimentos realizados são de pacientes de outras cidades, outros estados e até mesmo de países vizinhos com quem o Brasil faz fronteira", diz a prefeitura.
O professor e pesquisador de saúde pública da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Alcides Miranda afirma que a capacidade de atendimento da rede hospitalar do SUS foi ampliada entre 2020 e 2021 para dar conta das duas ondas de covid, quando houve abertura de unidades e leitos de UTI. "Mas parte desses equipamentos foi desativada nos últimos meses", diz.
O ponto positivo dessa nova leva de pacientes é que eles são menos graves, já que temos a maioria da população vacinada contra covid-19, e a gripe tem uma taxa de letalidade muito menor.
Ele alerta que a transmissibilidade aumentada da ômicron pode gerar sobrecargas e, eventualmente, colapso com impactos de maior dificuldade para a assistência dos casos de complicações pela covid e também por outras causas.
"Todos esses fatores podem agravar a crise de desassistência. Lamentavelmente nos faltam informações imprescindíveis para a análise prospectiva e georreferenciada de curto prazo, que possibilitaria a antecipação e localização de eventos de sobrecargas ou colapsamentos e, a partir daí, a preparação das necessárias medidas de contingenciamento e suporte."
Fonte: BBC News Brasil - UOL