Cotidiano

Avião, plano de saúde, escola privada; brasileiro abre mão de benefícios para viver com inflação e desemprego





País avança na vacinação para conter pandemia, mas ainda precisa contornar problemas econômicos agravados pela crise sanitária

Viajar com a família, trocar de carro, investir em um negócio próprio ou colocar os filhos na escola particular. Planos como esses sempre fizeram parte do cotidiano das famílias brasileiras —mas ter de abrir mão deles tem se tornado algo ainda mais frequente.

Enquanto o país comemora o avanço na vacinação para conter os efeitos trágicos da Covid-19, é preciso contornar os problemas que a crise sanitária agravou.

Nesse contexto, contra a melhora no bem-estar da população pesam desemprego, inflação, queda de renda e dificuldade de voltar ao mercado de trabalho após períodos mais longos sem ocupação.

De acordo com uma sondagem do Instituto Locomotiva, feita a pedido da Folha, essa realidade tem levado a um corte de orçamento durante e após o pior da pandemia. Entre os entrevistados, 26% das famílias disseram que precisaram deixar de ter plano de saúde individual ou reduzir o uso.

Além disso, 14% não conseguiram mais pagar mensalidade escolar dos filhos e tiveram de transferir as crianças para a rede pública, 12% não têm mais trabalhadores domésticos e 52% desistiram de trocar de carro.

Quando olham para o futuro, os entrevistados que tiveram de sacrificar um bem ou serviço também parecem pessimistas: 50% dizem crer que não devem conseguir voltar a pagar por uma escola privada no ano que vem, 49% não se imaginam usando um plano médico particular, 56% não se veem viajando de avião e 85% devem ficar sem frequentar restaurantes.

O instituto ouviu, por telefone, 1.820 pessoas de todas as faixas de renda, em 72 cidades de todas as regiões do país.

Para além das perdas de vidas, a pandemia afetou, sob diferentes aspectos, a sensação de bem-estar dos brasileiros, reforça Renato Meirelles, presidente do Locomotiva.

"A crise abalou dois elementos fundamentais para a retomada econômica: confiança e desejo. O brasileiro não está seguro em relação ao seu futuro e acaba adiando sonhos e não fazendo tantos planos. Em vez disso, aperta o cinto e se contenta em sobreviver", diz.

Essas dificuldades refletem a queda acentuada do padrão de vida no ano passado. Segundo o FMI, o PIB (Produto Interno Bruto) per capita do Brasil, uma das principais formas de medir o bem-estar da população, recuou de US$ 15.450 em 2019 para US$ 14.916 em 2020, pelo conceito que considera a paridade do poder de compra das moedas locais.

O valor é abaixo ao de países da América Latina como Chile (US$ 23.366), Argentina (US$ 20.750) e México (US$ 19.130). Com o resultado, o Brasil caiu para a 85ª posição entre os cerca de 195 países para os quais há dados.

Em 2014, quando o país registrou o valor mais alto de PIB per capita (US$ 15.800), estava na 76ª posição global.

A CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) estima que a recuperação do padrão de vida este ano não deve ser suficiente para superar essa perda, mesmo com a estimativa de alta de 5,3%, no Boletim Focus, do Banco Central. Para a entidade, o PIB per capita deve crescer 4,5% em 2021.

Apesar de um otimismo quanto ao reaquecimento de comércio e dos serviços, com o avanço da vacinação, a pandemia deixará marcas também na vida financeira dos brasileiros, avalia o economista-chefe da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), Fabio Bentes.

"Há um agravante que pode levar ao adiamento dos planos: o financiamento, com o aumento da taxa de juros", diz Bentes. A expectativa é vermos os juros básicos, hoje em 5,25% ao ano, chegarem a 7,5% este ano, o que prejudica a parte do consumo que depende da tomada de crédito.

O último ano foi de mudanças radicais para o empresário Leonardo Agostinho de Brito, 31. No começo de 2020, ele se preparava para inaugurar seu terceiro restaurante no Rio de Janeiro. Quase um ano e meio de pandemia depois, Brito acabou desistindo de inaugurar a nova casa, que funcionaria dentro de um shopping.

Sócio na pizzaria Cobre, na zona sul da cidade, ele deve transformar uma hamburgueria do grupo em apenas delivery e alugar parte do espaço atual do restaurante para serviços de entrega. "Ainda estamos nos adaptando. A nossa ideia é sublocar um espaço na loja e fazer uma central de delivery, com cozinhas funcionando 24 horas", afirma.

O carioca também faz as contas de como os efeitos da pandemia mudaram seu cotidiano. Teve de trocar de carro, para um modelo popular e usado, e foi preciso fazer empréstimos para as contas fecharem.

"Também fizemos uma reforma no restaurante, pois sentimos que o público está com menos dinheiro e só sai de casa para ter uma experiência completa, que compense o investimento. Ninguém está saindo de casa para comer só uma pizza."

Meirelles lembra que, apesar do avanço da vacinação, a pandemia não acabou, e o cenário de incerteza continuará pressionando a economia. "A classe média, que é o motor do consumo, está na defensiva, e cortando gastos."

Os dados de alguns setores ajudam a contar esse movimento. Com a pandemia, as escolas particulares perderam em torno de um terço das matrículas no país, segundo relatório da empresa especializada em gestão escolar Rabbit.

A consultoria estima que 2,7 milhões de estudantes tenham deixado o ensino privado entre setembro de 2020 e março de 2021 e que as instituições mais afetadas foram aquelas com até 180 alunos.

Um desses alunos é a filha do ajudante de obras Marcelo Carmo, 48. Sem trabalho durante os primeiros meses da pandemia, Carmo não conseguiu manter o aluguel da casa, em que vivia com a mulher e a filha. O casamento acabou e as duas se mudaram para o interior fluminense, para morar com parentes. Marcelo foi parar na rua.

Reportagem recente mostrou o aumento no número de famílias brasileiras em situação de rua após terem sido despejadas. O movimento ocorre no mesmo momento em que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou integralmente um projeto de lei que proibia a expulsão de imóveis durante a crise.

"Minha sorte foi conseguir morar depois com um amigo. Não é muito, mas é melhor do que nada. Antes, o plano era pagar a escola da nossa filha, para que ela tivesse mais chance no vestibular; agora, o plano é sobreviver até o dia seguinte", conta Carmo. Ele vive de pequenos bicos, enquanto tenta recuperar a antiga casa.

Um outro estudo, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), aponta que quase todas as faixas de renda tiveram alguma queda real (já considerada a inflação) em seus rendimentos habituais no primeiro trimestre deste ano. As maiores perdas se deram entre as famílias de classe média baixa, com rendimentos de até pouco mais de R$ 4 mil.

Em 2020, os procedimentos médicos com planos de saúde, como consultas, exames e terapias, caíram 17,2% na comparação com o ano anterior, segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).

Já o número de beneficiários no trimestre encerrado em junho era de 48,2 milhões —alta de 2,3% em relação ao início da pandemia, mas ainda em um patamar abaixo de antes da crise 2015 e 2016, embora o setor apostasse em uma recuperação mais rápida.

Ao mesmo tempo, de acordo com a Pnad Contínua, do IBGE, os trabalhadores em serviços domésticos tiveram queda de 6% em seus rendimentos habituais no trimestre encerrado em maio.

Além da queda de renda, o cenário atual combina desemprego em alta e mais inflação, que destrói o poder de compra das famílias.

No caso do desemprego, a taxa de desocupação no trimestre encerrado maio foi de 14,6%. Isso corresponde a 14,8 milhões de pessoas buscando um trabalho no país, também segundo a Pnad Contínua.

"O dinheiro da rescisão deve durar por mais seis ou oito meses", conta o engenheiro e especialista em automação Cléber Albino, 41, que entrou para as estatísticas de desemprego há quase um ano e meio. Trabalhando em uma empresa terceirizada de autopeças há pouco menos de uma década, ele foi cortado quando a crise causada pela pandemia bateu com força na indústria.

"Até pensamos em montar algum negócio, mas os amigos que tinham um restaurante acabaram quebrando."

Ele, que fazia planos de trocar de carro e de viajar ao Sul do país com a família, de repente passou a cortar despesas e esperar com apreensão pelas entrevistas de emprego que não apareciam.

"E quando aparecia alguma vaga, era por um salário muito inferior."

O engenheiro agora faz um curso de formação técnica, para aumentar as chances de se recolocar. "Às vezes, falam que sou preparado demais para a vaga ou que não tenho a formação que eles querem."

O contingente de pessoas subutilizadas (que são aquelas desocupadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas ou na força de trabalho potencial) era de 32,9 milhões no trimestre até maio.

Já a inflação oficial do país, pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor - Amplo), bateu em 8,99% em 12 meses até julho. O índice tem sido puxado, sobretudo, por alimentos e pela conta de luz mais cara, já que, além do desafio de se recuperar dos efeitos da pandemia, o país ainda enfrenta uma crise hídrica, que aumenta os custos de energia.

Fonte: Folha de São Paulo