Política

Kamala Harris viaja para América Latina com tarefa de estancar crise migratória





Vice-presidente americana assume missão que já foi de Biden; detenções na fronteira com México vêm batendo recordes

A democrata Kamala Harris faz na Guatemala e no México sua primeira viagem internacional como vice-presidente dos Estados Unidos nesta segunda (7) e terça-feira (8). A visita faz parte dos esforços para tentar conter o fluxo migratório dos países do chamado Triângulo Norte da América Central (Guatemala, El Salvador e Honduras) pela fronteira dos EUA com o México. Mas o principal objetivo não é debater os desafios na divisa. É abordar as causas que levam milhares de pessoas a abandonar seus lares em busca de oportunidades nos EUA.

Na Guatemala, Kamala se reúne nesta segunda com líderes comunitários e empresários e mantém um encontro bilateral com o presidente Alejandro Giammattei. No México, país com o qual os EUA mantêm fortes laços econômicos, a vice americana se reúne na terça com o presidente Andrés Manuel López Obrador e se encontra com empreendedoras e trabalhadores antes de voltar aos EUA no mesmo dia, segundo assessores citados pela imprensa americana. 

Das três nações do Triângulo do Norte, a Guatemala foi escolhida para a visita por ter um governo relativamente mais estável e pela posição geográfica entre México, Honduras e El Salvador.

 O presidente Joe Biden encarregou Kamala de liderar os esforços diplomáticos para a região em março, quando as travessias da fronteira dispararam – havia um contingente de migrantes represado pós-Donald Trump e suas políticas rigorosas anti-imigração. Segundo dados da Agência de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA, 173.348 migrantes foram detidos ao tentar cruzar a fronteira sem documentos, o maior total em 20 anos. 

Também cresceu o número de crianças e adolescentes desacompanhados, que tiveram de ficar em abrigos durante semanas: 18.960, ou mais de 60% acima do recorde anterior de 11.494, em maio de 2019. Em abril, dos 17.171 menores chegando sem responsáveis, 40% eram da Guatemala.

O grande fluxo de migrantes, que voltou a bater recorde em abril com 178.622 detenções (últimos dados consolidados), aconteceu enquanto Biden desmontava parte das severas medidas de Trump, norteado pela promessa de reestruturar de forma abrangente a questão migratória. Já na posse em janeiro, por exemplo, Biden impôs uma moratória de 100 dias às deportações de alguns imigrantes sem documentos e suspendeu a construção de um muro na fronteira com o México.

Kamala Harris, vice-presidente dos EUAKamala Harris, vice-presidente dos EUAFoto: Drew Angerer/Getty Images

Preparada para a tarefa

A imigração se tornou o ponto fraco de Biden. Se seu índice geral de aprovação é de 63% e o combate da pandemia é visto positivamente por 71% dos americanos, apenas 43% aprovam o manejo da crise migratória, segundo uma pesquisa AP-NORC divulgada em maio. Além disso, a oposição republicana culpa Biden pela crise e já aposta no tema migratório como um dos principais das eleições legislativas do ano que vem, que vão redefinir a configuração do Congresso dos EUA.

É nesse contexto desafiador para a Casa Branca que Kamala foi designada para implementar uma estratégia de longo prazo para lidar com as causas da migração. “Ela é a pessoa mais qualificada para fazer isso”, declarou o líder americano em 23 de março, quando a incumbiu da função que ele mesmo desempenhou como vice durante o segundo mandato do presidente Barack Obama (2009-2017).

O jornalista Dan Morain, autor da biografia 'Kamala Harris' (Editora Agir), lembra que o tema não é novo para a vice-presidente, que nasceu na Califórnia, estado na fronteira com o México. “Quando concorreu ao Senado, em 2016, uma de suas principais pautas foi a imigração, permitir uma entrada mais ordenada e legalizar as pessoas que estão no país, que seguem as leis, mas vivem sem documentos”, disse, completando: “A imigração é parte-chave de quem ela foi como senadora.”

Em um pronunciamento durante a 51ª Conferência de Washington sobre as Américas, em 4 de maio, Kamala indicou como vem lidando com a questão como vice-presidente. Ela sugeriu o repúdio ao unilateralismo da “América em Primeiro Lugar” de Trump, afirmando que o governo Biden preza pela colaboração e diplomacia. Também indicou que a situação na fronteira é sintoma, e não o problema em si. “As pessoas na região não querem abandonar as comunidades que conheceram por toda vida”, disse. “Elas partem apenas quando sentem que devem.”

Migração na fronteira dos EUA com MéxicoMigrantes tentam cruzar a fronteira dos Estados Unidos com o México e são detidos pela polícia, no ArizonaFoto: Nick Ut/Getty Images

Desde que assumiu a tarefa, Kamala prometeu o envio de adicionais US$ 310 milhões (mais de R$ 1,5 bilhão) em auxílio para o Triângulo Norte e anunciou a participação de 12 empresas na promoção de oportunidades econômicas na região. As medidas são para combater os fatores que forçam as pessoas a se dirigir para os EUA, como insegurança alimentar, mudança climática, desastres naturais e violência.

Na conferência em maio, a vice americana indicou que o combate à corrupção também deve ser um dos principais eixos de ação. “Não faremos progresso significativo se a corrupção persistir. Se isso continuar, a história nos mostra que será um passo para frente e dois para trás”, afirmou no discurso, que priorizou a questão migratória dos vizinhos mais imediatos e não mencionou nenhum outro país latino-americano, como o Brasil. 

Vice-presidência histórica

O esforço diplomático é o primeiro grande papel que Kamala assumiu desde que chegou de forma inédita à Casa Branca. Filha de pai jamaicano e mãe indiana, ela é a primeira mulher e a primeira descendente de negros e asiáticos a ocupar a vice-presidência dos EUA. “Essa foi a primeira vez que a eleição do vice foi mais histórica do que a eleição do presidente”, disse Joel Goldstein, professor emérito da Universidade de St. Louis e considerado o maior especialista em vice-presidência dos EUA. Por isso, seus passos vêm sendo acompanhados de perto.

Segundo Goldstein, Biden deixou claro desde a eleição que Kamala não seria apenas a primeira na linha de sucessão, mas alguém que faria diferença como conselheira presidencial e mediadora em disputas políticas e diplomáticas, similar à forma como ele próprio atuou quando no cargo. “Ele particularmente disse que, assim como era a última pessoa na sala com Obama, ela também seria a última pessoa a ter a chance de mudar sua opinião”, disse o autor de 'The White House Vice Presidency: The Path to Significance, Mondale to Biden' (A Vice-Presidência da Casa Branca: o Caminho para a Relevância, de Mondale a Biden, sem edição no Brasil). “Ele quer que ela seja bem-sucedida, porque sabe que seu governo pode ter mais êxito se tiver um parceiro capacitado, com poder.”

Particularmente na questão migratória, o biógrafo Morain acredita que a experiência de vida de Kamala, que cresceu dos 12 aos 18 anos na cidade canadense de Montreal e passou períodos na Jamaica e Índia, dá a ela uma nova perspectiva para lidar com o assunto. “Kamala certamente não é provinciana e tem uma visão mais ampla do mundo do que muitos americanos”, afirmou. Ele também aponta a personalidade dela como outro aspecto que deve ajudá-la na função. “Ela é uma negociadora durona. Qualquer político nos EUA ou líder no mundo que a subestime o faz por sua própria conta e risco.”

Mas o papel, descrito como “granada a ser desarmada” e “vespeiro” pela imprensa dos EUA, pode trazer riscos políticos, principalmente porque Kamala é vista como candidata potencial à presidência já em 2024 por causa da idade de Biden, de 78 anos. Desde que assumiu a função, republicanos tentam culpá-la pelos problemas atuais na fronteira.

“Tentam manchar sua imagem porque ela tem relevância política”, afirmou Goldstein, lembrando que Kamala é criticada desde a eleição de 2020 por seu gênero e origem. Mas é exatamente nessas particularidades que Goldstein vê a força da atual vice-presidente. “Ela exprime o ideal do governo Biden de ser inclusivo e representativo para quem tradicionalmente foi excluído de posições de poder. Suas características demográficas criam oportunidades para ela tanto doméstica quanto diplomaticamente.”

Morain descreve as críticas republicanas como “tolas” e descarta que existam muitos riscos políticos para Kamala. Ele aposta que qualquer avanço, mesmo que pequeno, será positivo pelo fato de que a imigração é uma questão que assombra líderes americanos há anos. “Ela vai ganhar pontos por tentar e talvez haja alguma reconciliação, mas vai levar tempo”, afirmou. “Se ela falhar, bem, os líderes nacionais nos últimos 30 ou 40 anos falharam, então ela não estará sozinha.”

Fonte: CNN Brasil