Em depoimento de quase sete horas hoje à CPI da Covid, o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, contradisse o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e culpou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pelo atraso nas negociações da compra da vacina CoronaVac pelo governo federal.
O relator da Comissão Parlamentar de Inquérito, senador Renan Calheiros (MDB-AL), considera que o depoimento de Dimas contradisse ainda as falas do ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e do ex-secretário de Comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten. Ambos também já depuseram à CPI.
Segundo Dimas Covas, o acordo com o Ministério da Saúde quanto à CoronaVac não prosseguiu no ano passado em razão da manifestação pública do presidente Bolsonaro de que o imunizante não seria comprado.
O dirigente do Butantan afirmou que as tratativas foram iniciadas com Pazuello, então ministro da Saúde. No entanto, as conversas foram prejudicadas após declaração de Bolsonaro contra o imunizante. Foi o episódio em que, após ser desautorizado publicamente pelo presidente, Pazuello disse: "Um manda, o outro obedece", em 22 de outubro de 2020.
Infelizmente, essas conversações não prosseguiram, porque houve, sim, aí, uma manifestação do presidente da República, naquele momento, dizendo que a vacina não seria, de fato, incorporada, não haveria o progresso desse processo"Dimas Covas
Pazuello nega ter sofrido pressão de Bolsonaro para que não comprasse a CoronaVac. No entanto, declarações gravadas e públicas do presidente da República mostram o mandatário contra a compra da vacina e sua incorporação ao PNI (Programa Nacional de Imunizações).
O Butantan fez uma oferta de 100 milhões de doses da CoronaVac ao governo Bolsonaro em outubro de 2020, informou Dimas. Mas, até então, não havia "resposta positiva" do Ministério da Saúde em relação às negociações para aquisição do imunizante desenvolvido em parceria com o laboratório chinês Sinovac, disse
Nesse mesmo período, Bolsonaro contestava publicamente a eficácia da CoronaVac e, num contexto de disputa política com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou que não compraria o imunizante.
Durante a audiência de hoje na CPI, Renan Calheiros exibiu um vídeo de uma live do presidente na qual Bolsonaro dá um recado ao tucano: "Arruma outro para pagar a sua vacina".
Senadores de oposição ao governo têm persistido na versão de que houve erro do ministério —e até mesmo crime— durante esse processo. Aliados do presidente alegam que, à época, o imunizante ainda não era aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
De acordo com o depoimento de Covas, enquanto o chefe do Executivo federal manifestava publicamente sua resistência à CoronaVac, o Ministério da Saúde acabou por protelar as negociações com o Instituto Butantan, que pertence à estrutura do governo de SP, e recusou uma sugestão de apoio financeiro —os recursos seriam utilizados para reformar uma fábrica destinada a produção própria do imunizante.
"Em 7 de outubro, eu enviei novamente um ofício ao ministério, historiando e ofertando 100 milhões de doses, sendo que, desses 100 milhões, 45 seriam produzidas no Butantan até dezembro de 2020, 15 milhões de doses no final de fevereiro e 40 milhões adicionais até maio deste ano", afirmou Dimas.
A oferta de 100 milhões foi a segunda enviada ao governo federal pelo Instituto Butantan. Em julho de 2020, a entidade já havia se colocado à disposição para produzir 60 milhões de doses, com previsão de entrega no último trimestre do ano passado.
Diante da ausência de um posicionamento por parte do ministério, Dimas relatou que o instituto "reforçou o ofício" em 18 de agosto, com um pedido de verba para financiamento dos estudos clínicos.
Ante ao contexto de disputa política, o dirigente do Butantan disse considerar que o Brasil perdeu uma oportunidade ter sido um precursor da vacinaçãocontra a covid-19 em escala global.
E afirmou que a campanha nas redes sociais contra a CoronaVac foi extremamente prejudicial à credibilidade da instituição. Para ele, "questionar o Butantan significa questionar a qualidade da saúde pública brasileira".
Dimas também mencionou uma suposta demora da Anvisa para aprovar o uso emergencial da vacina. A liberação ocorreu em janeiro deste ano.
"Muitas vezes, declarei de público que o Brasil poderia ser o primeiro país do mundo a começar a vacinação, não fossem os percalços que nós tínhamos que enfrentar durante esse período, tanto do ponto de vista do contrato, como do ponto de vista também regulatório. Quer dizer, a regulamentação para uso emergencial das vacinas no Brasil saiu em dezembro pela Anvisa. Em outros países, em meados do ano passado, já existia essa regulamentação."
Hoje, a CoronaVac responde por mais de 70% de todas as doses contra a covid-19 aplicadas até o momento no Brasil.
Dimas relatou que as conversas para a compra da CoronaVac pela União começaram a evoluir a partir de outubro, com uma "sinalização" por parte do Executivo federal de "existir uma medida provisória para atender esses pleitos".
Em 20 de outubro de 2020, Pazuello anunciou acordo com o estado de São Paulo para a compra de 46 milhões de doses da Coronavac, com a incorporação da vacina ao Programa Nacional de Imunizações.
"Tudo, aparentemente, estava indo muito bem, tanto é que, no dia 20 de outubro, eu fui convidado pelo então ministro da Saúde, general Pazuello, para uma cerimônia no Ministério da Saúde onde a vacina seria anunciada como sendo uma vacina do Brasil", rememorou Dimas.
"Até, na sua fala, [Pazuello] disse: 'Esta será a vacina do Brasil: a vacina do Butantan, a vacina do Brasil'. E [o ex-ministro] anunciou, naquele momento, publicamente, com a presença de governadores, de parlamentares, que iria ser feita uma incorporação de 46 milhões de doses."
Um dia depois do anúncio de Pazuello, no entanto, Bolsonaro desautorizou o então ministro publicamente e disse que havia mandado cancelar qualquer protocolo assinado pelo ministério para a compra da CoronaVac.
Bolsonaro foi às redes sociais e escreveu que o Brasil não compraria "a vacina da China" ou a "vacina chinesa de João Doria". No mesmo dia, em visita a um centro militar em São Paulo, o presidente reforçou sua autoridade na condução da pandemia: "O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade".
Ao receber Bolsonaro no dia seguinte, Pazuello disse: "Um manda, o outro obedece".
A partir desse ponto, é notório que houve uma inflexão, e eu digo isso porque, no final da reunião, no dia 20, com a presença de vários governadores, vários parlamentares, nós saímos de lá muito satisfeitos com a evolução dessas tratativas e achávamos que, de fato, iríamos ter resolvido parte desse problema"Dimas Covas
O primeiro lote da CoronaVac acabou sendo comprado pelo governo federal apenas em janeiro, numa disputa com o governo paulista para ver quem começaria efetivamente a vacinação no Brasil. A primeira dose da CoronaVac fora dos testes clínicos foi aplicada em São Paulo em evento com a presença de Doria, para dissabor de Bolsonaro.
Pazuello depôs por dois dias à CPI e foi reconvocado ontem. O novo depoimento ainda não tem data marcada, mas deve ficar para depois de 17 de junho.
Dimas afirmou aos senadores da CPI da Covid que o Ministério da Saúde não ofereceu ajuda financeira para a conclusão dos estudos clínicos da CoronaVac.
"Até esse momento nenhuma [ajuda]", disse. O dirigente do Butantan destacou ter informado ao governo, em ofício, sobre os estudos da vacina em julho de 2020, "inclusive, tecnicamente, as características da vacina".
Segundo Dimas, foram solicitados R$ 60 milhões para a construção da fábrica do Butantan e R$ 45 milhões para o estudo.
Questionado sobre o que motivou as negativas do ministério, Dimas disse ser "uma boa pergunta". "Nós nos esforçamos ao máximo para dar todas as informações técnicas, havia, naquele momento, incertezas em relação às vacinas, de uma forma geral, não especificamente em relação a essa vacina, mas essa tinha todos os elementos que apontavam exatamente para a oportunidade que nós enfrentávamos naquele momento."
Ao longo da fala, Dimas Covas afirmou ainda que a tese da imunidade de rebanho "foi descartada há muito tempo" e que "tudo indica que haverá necessidade de doses anuais" da vacina contra a covid-19, como reforço, a exemplo da vacina contra a gripe.
Fonte: UOL com a colaboração de Ana Carla Bermúdez